quinta-feira, 7 de dezembro de 2023




Texto introdutório - Lançamento do livro 

"História de Uma Viagem, ou Duas, 

ou Talvez Não"



Traço Linhas

 

Há dias bateu-me à porta o homem das estatísticas. Queria que eu preenchesse não sei que impressos. Não me apeteceu. E disse-lhe que não ia conseguir preencher aquilo.

Então, ele começou a encher os espaços em branco com uma tinta azul, irritante. Há muitos tons de azul, mas ele escolheu para a sua esferográfica, aquele. O irritante. Quando chegou à profissão, perguntou-me qual era.

Fiquei para ali, a pensar, a pensar… E disse-lhe: 

- Traço linhas. 

Não percebeu. Não percebeu, e tive de repetir. 

– Como? 
– Traço linhas. 

Não sei o que escreveu. Até ali, estive a espreitar o papel que ele colocou em cima do parapeito da janela, para poder escrever, e fui lendo o que lá tinha, mas depois de lhe dizer a minha profissão, começou a tapar o que estava escrito com a mão esquerda. Estive a aturá-lo por uns bons minutos e depois disse-lhe 

– Bom, já acabou? Desculpe, mas agora vou. Tenho ovos a estrelar. - 

Olhou para mim com aqueles olhos abertos que costumam pôr as pessoas quando ouvem alguma coisa esquisita e terminou.

Reparei então que tinha uma expressão triste. Fiquei muito aflita e disse-lhe 

– Quer um copo de água? Está muito calor… 

Pôs os olhos “não me chateie” e disse: - Não, obrigado. - Eu quis apagar a linha, mas já não fui a tempo…

A minha mãe teve alzheimer. Bem, não era, propriamente, chamaram-lhe demência senil. Há uma linha que separa, o lembrar do… esquecer. É como quando traças uma linha a negro numa tela branca. Se o fizeres com uma tinta negra muito diluída, ela começa a escorrer, a escorrer, e a metade branca vai conspurcar-se de negro e começa a mudar de côr.

Eu, tracei uma linha para esquecer o mal que me fizeram quando me cortaram o sonho com uma linha que eu tinha de seguir. Depois tracei outra linha à minha frente. Não vais transpor essa. Aqui deste lado estou eu.

Quando danço, traço linhas. As mãos vão escrevendo as notas de música no espaço com cores. São como serpentinas coloridas. Cada nota tem uma côr. Nunca tinhas reparado?

Quando terminei este livro tracei outra linha. 

É aquela que diz: - Não faças juízos de valor. Para isso seria preciso "calçar, os meus sapatos”.