sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Do livro "História de Uma Viagem, ou Duas, ou Talvez Não"


Do livro "História de Uma Viagem, ou Duas, ou Talvez Não"


 ... Farpas afiadas. Pelas paredes dentro. Até a luz da sala me parece mortiça. Câmara mortuária. As cinzas da mãe sobre o móvel rústico francês, lá no cimo entre duas estátuas, cabeças do Buda em pedra. Por aqueles dias, trezentos e sessenta e cinco vezes quatro, excluindo o bissexto, me chamaste filha, como nunca o fizeras, até ao dia em que perdida a memória por completo, e dado o conhecimento ancestral, de que são as mães que cuidam dos filhos, me chamaste mãe.

Entre lágrimas e cascas de batatas, cenouras e folhas de alho francês, ouvi-te dizer como num sonho – Estás a fazer sopa mãe? … É tão boa a tua sopa… fazes uma sopa tão boa! – Voltei-me surpreendida. Sentada à mesa, os olhos sem expressão, folheavas uma revista que não sabias ler, com imagens de paisagens que não vias, que eu te colocara nas mãos. E respondi-te, mais uma vez comovida, com aquela dependência mansa, que te tornava tão próxima dos meus gatos e cadela, aliás todos reunidos na cozinha, confiados e serenos, cada um na sua cama, enquanto preparo as refeições. – Sim filha. Estou a fazer uma bela sopinha de nabiças para nós. – Acho que nunca amei tanto a minha mãe, como nesse tempo. E afinal ela, a mim. Outras vezes, nos raros momentos de lucidez, dizia-me – Trabalhas tanto, filha. Devias descansar. Ela, que nunca me chamara filha com aquela ternura...


Virgínia de Sá

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

 




Do livro "História de Uma Viagem, ou Duas, ou Talvez Não"

... O espaço tinha duas entradas por ruas diferentes. Ao chegar à entrada, percebi que todas as chaves eram parecidas e para o mesmo tipo de fechadura. Selecionei uma chave aleatoriamente e... era a chave certa. Voltei a fechar, surpreendida e dei a volta ao quarteirão, dirigindo-me à outra rua. 

Selecionei outra chave do molho de doze chaves presas a uma argola grande. Novamente a porta se me abria à primeira tentativa, sem qualquer esforço. Tomei isso como um sinal. Entrei devagar, como se houvesse algum guardião invisível e tivesse de lhe pedir licença. 

Havia uma certa atmosfera de tristeza no ar. Aquele grande espaço, que teria sido em tempos destinado a uma garagem, possuía divisórias envidraçadas encaixadas em alumínio que separavam gabinetes destinados a antigos funcionários. Uma coisa antiga como se de uma Conservatória se tratasse.

 Imaginei logo que retiraria todas as divisórias transformando o espaço num grande salão onde organizaria cursos diversos e que também poderia ser utilizado para a dança. Percorri o corredor que dividia internamente os dois espaços até à sala da entrada principal, que era completamente envidraçada, fazendo a esquina do prédio para a rua. No corredor havia a mesma atmosfera de tristeza e recordo ter sentido por vezes arrepios quando o percorria.

No final, contudo, a atmosfera mudava completamente. Ali tudo era sol e o ambiente estava quente, ao contrário do espaço anterior, bastante frio e obscuro. 

Um enorme balcão de madeira maciça, disse-me que estava no lugar onde tinha existido a receção. Subi então ao primeiro andar por uma escada bastante sólida em cimento, onde pensei de imediato colocar um corrimão. Ao invés do piso inferior, aqui tudo era luz, uma luz difusa filtrada por persianas brancas e também por película anti-solar colocada por dentro a toda a volta nas enormes janelas... 

segunda-feira, 11 de setembro de 2023



 



Do livro "História de Uma Viagem ou Duas, ou Talvez Não"


... Parecia que queriam trazer-me algum recado, mas o sonho era sempre interrompido antes de conseguir recebê-lo. Depois, numa outra noite, um sonho ainda mais estranho trouxe-me algo bem real.

Encontrava-me numa piscina coberta, enorme, nadando de costas como é meu hábito fazer. Devia ser madrugada pela luz diáfana que entrava pela cobertura de vidro. Dei comigo à borda da piscina de cabeça baixa, andando à volta curvada a procurar na obscuridade os meus chinelos havaianos. Não os encontrei. No entanto, tinha a certeza de os ter deixado junto àquela escada... Junto ao chão o vapor formava uma cortina de nevoeiro baixo. Fui percorrendo o espaço devagar com cuidado para não escorregar, olhos no chão, mas onde estão o diabo dos chinelos? Não percebo como, mas devo ter dado toda uma volta à direita em redor até que embati num corpo vertical à minha frente, quase logo após a escada por onde havia saído antes de dar toda a volta à piscina.

Levantei os olhos endireitando o corpo até perceber que tinha chocado com um índio norte-americano de uns setenta anos, com mais de 1,80 m de altura, de compleição forte e peito largo
. Trazia na cabeça um adorno do lado direito com duas penas brancas.

A primeira palavra que surgiu na minha mente foi. Pai? Uma alegria grande percorria os meus sentidos. Era como se reencontrasse o meu 
pai ou alguém muito querido. Mas não. Não era o meu pai. Era uma figura de índio enorme para o meu pouco mais de metro e meio, que se levantava imponente diante de mim. Olhei-o de frente com uma vontade imperiosa de o abraçar. Na posição em que me encontrava, dada a proximidade frontal, apenas lhe vislumbrava o tronco e a cabeça. Um tórax magnífico de um espécime masculino, um alto pescoço onde se apoiava uma cabeça orgulhosa com duas penas brancas entrançadas junto à têmpora direita. Quando fiz menção de o abraçar, tocou-me com um pequeno, mas firme empurrão no ombro esquerdo e pronunciou as seguintes palavras:

– Perdeste um sapato, mas ainda te restam dois pés!...