segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Tempestade

 








Contos da Escrita Criativa

Exercícios de imaginação



Tempestade


De repente à nossa frente, levantou-se uma onda de mais de dois metros de altura. De todas as vezes que tínhamos ido à pesca, nunca assisti a uma coisa como esta. Segurei-me ao mastro com tanta força, que os dedos das mãos começaram a doer-me. 

Além da força que fazia, certo de que iria borda fora se me soltasse, havia o frio. Um ar gélido, tomava conta da proa. Depois o barco subiu na crista da onda, e vi cavar-se à minha frente uma enorme caverna que era o mar dentro do côncavo da onda seguinte, que abria uma garganta pronta a engolir-me. E logo em seguida o som do barco em queda livre, a cair em seco no vácuo que se abria sob a crista da onda. 

Vi os meus dias a terminarem ali. Quando quis soltar o mastro para ir verificar se o meu companheiro conseguia timonar o barco sozinho, percebi que me encontrava literalmente petrificado pelo medo. Os dedos gélidos, não conseguiam separar-se do cilindro de madeira do mastro à minha frente. E novamente a caverna escura abria uma bocarra imensa, ornada de espuma, e o barulho de queda em seco com toda a madeira do barco a estalar como se partisse, me levava a gritar:

- Valha-me S. Miguel!

Carta a uma amiga




Contos da Escrita Criativa

Exercícios de imaginação

Carta a uma amiga


Saber-te aí desse lado, pronta a escutar-me é importante para mim. 

À distância também é mais fácil. 

Depois fiquei apreensiva, porque pensei que estava a preocupar-te com um assunto que não te diz respeito. O nosso karma pessoal basta-nos. Não necessitamos atrair o dos outros. Mas fico grata por poder pôr para fora o que me corrói por dentro.

Claro que tento distrair-me, fazer coisas que me agradem. Inclusive trabalho, e isso dá-me prazer, mas a ferida está lá e acordo de noite com ela cravada no peito. Acho que ele nem percebe, ou finge não perceber. Interrogo-me, se também sou eu que distorço as coisas. No entanto, a situação é real, tal como a descrevi. E quando tudo parece estar a correr bem, apesar das dez horas seguidas no computador sem me dar atenção, lá vem algo mostrar que não estou errada. 

Aos poucos foi tomando conta da minha vida, da minha casa, das minhas coisas. Fecha-me a porta do escritório na cara, se estou a brincar com os cães. Manda-me calar porque faço barulho, sopra e diz palavrões, porque ocupo o meu espaço no meu computador frente a ele, porque não tenho outro, o que vou evitando cada vez mais, porque me incomoda que o incomode. É esse o objetivo, ou fá-lo inconscientemente? 

Não quer sair dali. Eu não gosto de passear sozinha. Deixei de ir à praia porque ele não gosta de água fria e de esperar para estacionar. Passeios na natureza, acabaram para mim. Com mágoa. Paguei metade do carro e pago o seguro sempre, e a gasolina quase sempre, mas deixei de conduzir e perdi a confiança para pegar no carro sozinha. E os dias passam iguais. A circulação nas minhas pernas piora.

Aqui estou eu prisioneira de mim, na minha própria casa. Escrever é o meu grito de revolta. Porque ele se mostrava às pessoas como o benfeitor que cuida da senhora doente oncológica, e paternalista, tenta protegê-la de tudo, mas não é assim. 

Sinto sempre que há uma espada apontada as minhas costas. Só não sei quando vai cortar mais um pedaço de mim. Uma vez foi-se embora durante vinte e um dias em que não soube nada dele, despediu-se de manhã para ir trabalhar com abraços e beijos frente a uma amiga que estava presente. A minha amiga disse-me quando ele saiu que eu "tinha muita sorte" por ter encontrado o Daniel. Aqueci o almoço e pus a mesa para almoçarmos e fiquei vinte e um dias à espera que voltasse e me dissesse o que se passou. Quando voltou eu tinha já uma recaída do linfoma. 

Face ao silêncio dele, não sei se estará a preparar outra partida inesperada. Com ele nunca se sabe. Já deixou assim outras pessoas antes e já me culpou por isso. 

Às vezes penso em mandá-lo embora, mas não poderia fazer isso. Sinto-me responsável e não quero que ele sofra. Seria incapaz de o pôr na rua sem ter para onde ir e com graves dificuldades de subsistência. Se eu fizesse isso, não ficaria mais feliz. Claro que também gosto dele. As pessoas são compostas de muita coisa. Depois, com a minha idade e os problemas de saúde que já tenho, além de talvez não aguentar uma separação e o inerente, estou muito vulnerável e também necessito dele. É uma companhia, embora não a necessária e como eu gostaria que fosse, mas ajuda. 

A vida não é perfeita e tomamos decisões que não são as melhores, mas por vezes as possíveis. Obrigada por me ouvires.

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

O Cachimbo

 





O cachimbo


Flores. 

O cheiro de flores antecedia a chegada dele.

O cheiro e a gargalhada.


Depois as pantufas. O velho sentado no sofá. 

Os olhos perdidos no vazio da parede.

A máquina fotográfica com que captou aquela realidade infeliz.

Um velho. 

Com o seu cachimbo apagado, sem já ter consciência de porque não o acendia.

Estilhaços

 





Escrita criativa

Exercícios de imaginação

Estilhaços


Ela trazia o café numa bandeja redonda e brilhante, com passos leves de amansar as iras e os sonhos. Porque também é preciso amansar os sonhos. Não voem eles demasiado alto e saltem pela janela dos olhos. Foi então que uma bola saltou lá em baixo, no pátio, e fez plom, plom, plom. A velha deixou cair a bandeja, da qual caiu a chávena que se desfez em pedaços. Às vezes as velhas estão trémulas. Não se sabe porquê, mas foi então que tudo parou. O casamento desfez-se em estilhaços cintilantes.

 






Escrita criativa

Exercícios de imaginação

Azul


Entre as agruras da vida, havia o azul dos teus olhos. 

Os teus olhos claros e límpidos de menino a refletir a luz.

Pareciam querer sempre dizer-me alguma coisa. 

E por vezes lá de dentro, espreitava uma maldadezinha, 

que não passava de alguma traquinice, algo matreiro... Sei lá. 

E eu pensava, o menino anjo desceu à terra para estar comigo,

mas tem lá dentro um diabito.


segunda-feira, 8 de abril de 2024

A água

 



A água


 A água veio em avalanche como se fosse uma catarata. 

Quando a água flui assim é como se fosse música. 

Corre água sobre as ideias sem deixar que se percam num sumidouro. 

À minha volta as palavras são açúcar. 

Açúcar é também o que me dizes. 

Vejo as notas em cores. 

Sou invadida por elas e por números. 

Tudo é criação e tudo é real neste universo matemático 

que também é crístico.


sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

 



CAIU UMA FOLHA E BUMM


É preciso ter sentido de amor...

e então

Foi no tempo em que a folha caía

A sopa estava ao lume´

E a alma já não doía

Caiu uma folha e bumm

   como se a alma caísse 

tudo ruiu

e o raio que o partisse

nada disse... e partiu