segunda-feira, 8 de abril de 2024

 


A água

 A água veio em avalanche como se fosse uma catarata. 

Quando a água flui assim é como se fosse música. 

Corre água sobre as ideias sem deixar que se percam num sumidouro. 

À minha volta as palavras são açúcar. 

Açúcar é também o que me dizes. 

Vejo as notas em cores. 

Sou invadida por elas e por números. 

Tudo é criação e tudo é real neste universo matemático 

que também é crístico.


sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

 



CAIU UMA FOLHA E BUMM


É preciso ter sentido de amor...

e então

Foi no tempo em que a folha caía

A sopa estava ao lume´

E a alma já não doía

Caiu uma folha e bumm

   como se a alma caísse 

tudo ruiu

e o raio que o partisse

nada disse... e partiu


 




O meu limão


Sentado no teu trono, e ocupado

Trono que era meu e te ofereci

Vives a tua vida embevecido

Vida que não conheço, ou conheci

Contas estórias não vividas
Para lá da imaginação
Enquanto eu só, entristecida
Espremo na cozinha o meu limão

Que torna mais azeda a minha vida
E sulca a minha terra adormecida
Mas sei de ti
Pela computação



quinta-feira, 7 de dezembro de 2023




Texto introdutório - Lançamento do livro 

"História de Uma Viagem, ou Duas, 

ou Talvez Não"



Traço Linhas

 

Há dias bateu-me à porta o homem das estatísticas. Queria que eu preenchesse não sei que impressos. Não me apeteceu. E disse-lhe que não ia conseguir preencher aquilo.

Então, ele começou a encher os espaços em branco com uma tinta azul, irritante. Há muitos tons de azul, mas ele escolheu para a sua esferográfica, aquele. O irritante. Quando chegou à profissão, perguntou-me qual era.

Fiquei para ali, a pensar, a pensar… E disse-lhe: 

- Traço linhas. 

Não percebeu. Não percebeu, e tive de repetir. 

– Como? 
– Traço linhas. 

Não sei o que escreveu. Até ali, estive a espreitar o papel que ele colocou em cima do parapeito da janela, para poder escrever, e fui lendo o que lá tinha, mas depois de lhe dizer a minha profissão, começou a tapar o que estava escrito com a mão esquerda. Estive a aturá-lo por uns bons minutos e depois disse-lhe 

– Bom, já acabou? Desculpe, mas agora vou. Tenho ovos a estrelar. - 

Olhou para mim com aqueles olhos abertos que costumam pôr as pessoas quando ouvem alguma coisa esquisita e terminou.

Reparei então que tinha uma expressão triste. Fiquei muito aflita e disse-lhe 

– Quer um copo de água? Está muito calor… 

Pôs os olhos “não me chateie” e disse: - Não, obrigado. - Eu quis apagar a linha, mas já não fui a tempo…

A minha mãe teve alzheimer. Bem, não era, propriamente, chamaram-lhe demência senil. Há uma linha que separa, o lembrar do… esquecer. É como quando traças uma linha a negro numa tela branca. Se o fizeres com uma tinta negra muito diluída, ela começa a escorrer, a escorrer, e a metade branca vai conspurcar-se de negro e começa a mudar de côr.

Eu, tracei uma linha para esquecer o mal que me fizeram quando me cortaram o sonho com uma linha que eu tinha de seguir. Depois tracei outra linha à minha frente. Não vais transpor essa. Aqui deste lado estou eu.

Quando danço, traço linhas. As mãos vão escrevendo as notas de música no espaço com cores. São como serpentinas coloridas. Cada nota tem uma côr. Nunca tinhas reparado?

Quando terminei este livro tracei outra linha. 

É aquela que diz: - Não faças juízos de valor. Para isso seria preciso "calçar, os meus sapatos”.

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

 



Dia das bruxas


As bruxas que queimaram, não eram bruxas, eram mulheres. 

Mas o pior de tudo é que ainda há bruxas a queimar MULHERES!

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Do livro "História de Uma Viagem, ou Duas, ou Talvez Não"


Do livro "História de Uma Viagem, ou Duas, ou Talvez Não"


 ... Farpas afiadas. Pelas paredes dentro. Até a luz da sala me parece mortiça. Câmara mortuária. As cinzas da mãe sobre o móvel rústico francês, lá no cimo entre duas estátuas, cabeças do Buda em pedra. Por aqueles dias, trezentos e sessenta e cinco vezes quatro, excluindo o bissexto, me chamaste filha, como nunca o fizeras, até ao dia em que perdida a memória por completo, e dado o conhecimento ancestral, de que são as mães que cuidam dos filhos, me chamaste mãe.

Entre lágrimas e cascas de batatas, cenouras e folhas de alho francês, ouvi-te dizer como num sonho – Estás a fazer sopa mãe? … É tão boa a tua sopa… fazes uma sopa tão boa! – Voltei-me surpreendida. Sentada à mesa, os olhos sem expressão, folheavas uma revista que não sabias ler, com imagens de paisagens que não vias, que eu te colocara nas mãos. E respondi-te, mais uma vez comovida, com aquela dependência mansa, que te tornava tão próxima dos meus gatos e cadela, aliás todos reunidos na cozinha, confiados e serenos, cada um na sua cama, enquanto preparo as refeições. – Sim filha. Estou a fazer uma bela sopinha de nabiças para nós. – Acho que nunca amei tanto a minha mãe, como nesse tempo. E afinal ela, a mim. Outras vezes, nos raros momentos de lucidez, dizia-me – Trabalhas tanto, filha. Devias descansar. Ela, que nunca me chamara filha com aquela ternura...


Virgínia de Sá

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

 




Do livro "História de Uma Viagem, ou Duas, ou Talvez Não"

... O espaço tinha duas entradas por ruas diferentes. Ao chegar à entrada, percebi que todas as chaves eram parecidas e para o mesmo tipo de fechadura. Selecionei uma chave aleatoriamente e... era a chave certa. Voltei a fechar, surpreendida e dei a volta ao quarteirão, dirigindo-me à outra rua. 

Selecionei outra chave do molho de doze chaves presas a uma argola grande. Novamente a porta se me abria à primeira tentativa, sem qualquer esforço. Tomei isso como um sinal. Entrei devagar, como se houvesse algum guardião invisível e tivesse de lhe pedir licença. 

Havia uma certa atmosfera de tristeza no ar. Aquele grande espaço, que teria sido em tempos destinado a uma garagem, possuía divisórias envidraçadas encaixadas em alumínio que separavam gabinetes destinados a antigos funcionários. Uma coisa antiga como se de uma Conservatória se tratasse.

 Imaginei logo que retiraria todas as divisórias transformando o espaço num grande salão onde organizaria cursos diversos e que também poderia ser utilizado para a dança. Percorri o corredor que dividia internamente os dois espaços até à sala da entrada principal, que era completamente envidraçada, fazendo a esquina do prédio para a rua. No corredor havia a mesma atmosfera de tristeza e recordo ter sentido por vezes arrepios quando o percorria.

No final, contudo, a atmosfera mudava completamente. Ali tudo era sol e o ambiente estava quente, ao contrário do espaço anterior, bastante frio e obscuro. 

Um enorme balcão de madeira maciça, disse-me que estava no lugar onde tinha existido a receção. Subi então ao primeiro andar por uma escada bastante sólida em cimento, onde pensei de imediato colocar um corrimão. Ao invés do piso inferior, aqui tudo era luz, uma luz difusa filtrada por persianas brancas e também por película anti-solar colocada por dentro a toda a volta nas enormes janelas...