terça-feira, 26 de janeiro de 2021

 


PANDEMIA


Aqui estou eu, sozinho

A meia lua do olho em baixo, o olho revirado para o teto, para os cantos,

buscando agora nalgum canto uma ameaça de bolor.

Lá fora a vida. A morte? 

Mastigo uma bolacha de água e sal. A barriga distendida pelas horas de sofá.

Na televisão repetem sem cessar os mortos do dia, os mortos da semana, os mortos do mês, os mortos do ano, os mortos da cidade, os mortos do país, os mortos da Europa, os mortos do mundo.

E eu mastigo a bolacha entediado, enjoado de tantos mortos, de tantas seringas e de tantas promessas de crise futura.

Ela foi-se embora. Para casa da mãe, da irmã ou para a pata que a pôs. Mas foi-se. Foi-se e deixou-me aqui, com as bolachas de água e sal, o gato com dezoito anos e eu com os meus sessenta.

Levou os vestidos, os casacos, a loiça do enxoval que trouxe quando juntámos os trapinhos. Levou as promessas, os sonhos, o cantarolar da manhã, o pássaro a debicar no muro as migalhas do pão. Levou a almofada amachucada onde os seus cabelos deixavam uma mancha escura e farta. Levou os olhos rasos de água de quando ouvíamos música e levou os choros, as suspeitas e os ciúmes. 

Eu e o gato aqui no sofá a cheirar a morte pela televisão, 

até que uma manhã de primavera traga outra vez o sol.

 



Agora que o Carlos do Carmo partiu, lembrei-me de um fado canção que me fez sentir aos vinte e poucos anos uma grande compaixão pelos idosos. Vinte e poucos anos e aquele fado fez correr lágrimas sentidas no meu rosto.

Lágrimas de compaixão pelos velhos, sempre mais esquecidos, mais vulneráveis, mais pobres, senão materialmente, ao menos de afetos, de carinhos, de uma festa ou de um sorriso.

No fado, “Balada para uma velhinha”, Carlos do Carmo cantava, com letra de Ary dos Santos, "no banco do jardim uma velhinha, está tão só com a sombrinha, que é o seu pano de fundo...Num banco de jardim uma velhinha está sozinha, não há coisa mais triste neste mundo … já coseu alpergatas e bandeiras, verdadeiras... amargou a tristeza até ao fundo".

Hoje também eu, "velhinha", sessenta e dois anos feitos, pergunto-me o que tinha aquele homem para me tocar tão profundamente aos vinte e tantos anos, que me fazia chorar por aqueles velhos tristes quando os via sentados num banco de jardim, à espera… de quê? E sim, às senhoras pode e deve-se perguntar a idade. Não há nada para esconder no facto inexorável de se ter envelhecido.

Felizes aqueles que chegam a envelhecer e ainda assim continuam a crescer e a fazer coisas. Carlos do Carmo partiu, mas sempre num crescendo, deixou-nos um legado inigualável daquilo que hoje nos ensinam a dissimular e esconder. Emoções. Mas nós não somos um país canalha. Não vamos em conversas daqueles que não conseguem ter um discurso coerente porque não falam a verdade, venderam a alma à fama e ao poder e já não conseguem sentir.

Hoje chorei porque morreu um HOMEM. Chorei e não tenho vergonha de o dizer e de sentir, já "velhinha" a perda da voz que soube cantar o que sentimos. Acolhemos com amor os nossos retornados das Colónias, os nativos das mesmas, os asilados e refugiados políticos e todos os que quiseram vir viver para o nosso país. A todos estes, Carlos do Carmo cantou a nossa terra, a nossa gente. Pintou Lisboa em canção como nenhum outro o fez, mas também apelou à nossa alma, à nossa solidariedade, à democracia. E nós não somos um país canalha.

Não vamos esquece-lo nem ao que ele representa. Liberdade e solidariedade, emoção e inteligência, sensibilidade e humildade, no fundo, um povo que é o nosso.

Não. Não somos um país canalha!