terça-feira, 26 de janeiro de 2021

 


PANDEMIA


Aqui estou eu, sozinho

A meia lua do olho em baixo, o olho revirado para o teto, para os cantos,

buscando agora nalgum canto uma ameaça de bolor.

Lá fora a vida. A morte? 

Mastigo uma bolacha de água e sal. A barriga distendida pelas horas de sofá.

Na televisão repetem sem cessar os mortos do dia, os mortos da semana, os mortos do mês, os mortos do ano, os mortos da cidade, os mortos do país, os mortos da Europa, os mortos do mundo.

E eu mastigo a bolacha entediado, enjoado de tantos mortos, de tantas seringas e de tantas promessas de crise futura.

Ela foi-se embora. Para casa da mãe, da irmã ou para a pata que a pôs. Mas foi-se. Foi-se e deixou-me aqui, com as bolachas de água e sal, o gato com dezoito anos e eu com os meus sessenta.

Levou os vestidos, os casacos, a loiça do enxoval que trouxe quando juntámos os trapinhos. Levou as promessas, os sonhos, o cantarolar da manhã, o pássaro a debicar no muro as migalhas do pão. Levou a almofada amachucada onde os seus cabelos deixavam uma mancha escura e farta. Levou os olhos rasos de água de quando ouvíamos música e levou os choros, as suspeitas e os ciúmes. 

Eu e o gato aqui no sofá a cheirar a morte pela televisão, 

até que uma manhã de primavera traga outra vez o sol.

2 comentários:

  1. Respostas
    1. Obrigada Adilo Costa. É sempre muito gratificante sentir que faz eco no outro o que escrevo.

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