quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

 




Desafio para conto

Grupo de escrita criativa - Lara Barradas

Texto de Virgínia de Sá


Tema:  Construir um personagem a partir de uma entrevista

            Escrever um conto


Idealnéscio


Idealnéscio, era um homem de cinquenta e cinco anos, meio calvo, baixinho e demasiado magro. Se as pessoas se devessem julgar pela sua aparência, dir-se-ia um "Zé Ninguém". Enquanto andou na escola comercial, tinha por alcunha "o fuinha". Contabilista, era um pai cumpridor, e amante dos seus filhos, embora não o soubesse demonstrar. Era um homem de rotinas. Tomava o pequeno almoço religiosamente no café frente à igreja, como se a frequentasse. Todos os dias uma meia de leite e uma torrada em pão caseiro com pouca manteiga. Depois, dirigia-se a pé para o escritório que partilhava com outros dois contabilistas.

Na fachada norte do edifício, podia ler-se Idalécio, escritório de contabilidade. O nome não correspondia, mas veio a calhar. Quando era rapaz, se lhe perguntavam o nome dizia muito rapidamente Lécio ou Nécio para não ter de dizer o nome como ele era.  

Idealnéscio, era filho de um caixeiro viajante. Quando o pai fez o registo, sempre com pressa de partir, não reparou que o oficial do registo civil colocava Idealnéscio, em vez de Idalécio, que era o nome do seu avô. Assim o rapaz, teve de lidar sempre com a vergonha do seu próprio nome, e no dia que decidiu convidar os colegas para partilharem consigo o escritório de contabilidade, teve mesmo vontade de colocar o nome de um deles como principal. Foi a mulher quem o dissuadiu. - Então não querem lá ver? Tu é que tiveste a ideia, e agora ias pôr o nome de outro à cabeça? A mulher tinha razão. Bom, mesmo que não tivesse, ele diria que tinha e lá mandou fazer a placa. A surpresa chegou quando vieram colocá-la. 

O contabilista veio fora, admirar a placa negra, onde ressaltava a branco em grandes letras, conforme indicação da mulher que também era secretária na empresa, Idalécio e por baixo, em letras mais pequenas escritório de contabilidade. Idealnéscio, abriu a boca de espanto, mas quando ia a dizer "o nome está mal escrito", resolveu calar-se. Após reunião com os colegas, chegaram à conclusão que seria mesmo melhor para o negócio não mencionar tal nome. E assim ficou a placa e o nome da empresa de contabilidade, "em homenagem ao bisavô do contabilista". Toda a vizinhança que nunca tinha ouvido o verdadeiro nome, passou então a tratar o contabilista por Senhor Idalécio. Durante vinte e cinco anos, assim foi.

Precisamente quando o escritório ía comemorar um quarto de século, coincidiu com uma enorme crise nacional, que levaria à falência centenas de empresas e consequentemente vários escritórios de contabilidade. Nem era o caso de Idealnéscio, mas por via da crise, o contabilista acedeu a dar uma entrevista a um jornal local. De questão em questão, foi-se apercebendo que tinham passado vinte e cinco anos da sua vida, sem que nada de notável acontecesse. Começou então a frequentar um site de amizades online.

Havia já umas semanas que lhe aparecia uma linda senhora, brasileira, umas vezes a cavalo, outras em recepções ou festas, muito bem vestida e penteada. De imagem em imagem veio a perceber ser esta senhora, viúva, ter quarenta e oito anos,  e possuir uma fazenda no Brasil, onde fazia criação de cavalos. Não demorou um mês para que trocassem fotos e nem dois para trocarem juras de amor. A namorada virtual, , foi-lhe mostrando ao longo de dois meses todo o seu quotidiano. Tudo na verdade foi mostrado e ficou claro nas longas conversas que tiveram por vídeo. Tão real como se já estivessem juntos. 

Quanto mais contacto tinha com Esperança, assim se chamava a agora namorada brasileira, mais percebia o quanto a sua vida tinha sido sem pimenta e sem sal, e um dia, aproveitando a baixa de clientes, e a inferior faturação, convenceu a mulher de que iria viajar ao Brasil, com vista ao alargamento da atividade.

Convencidos também os colegas, de que poderia ser uma boa opção, prepara toda a viagem, ao mesmo tempo que se prepara para partir de vez e ir viver com Esperança. 

Depois de se despedir da família, e sobretudo de abraçar a filha que adorava, temo-lo então já no avião, vendo a sua terra a afastar-se, não sem antes ter transferido, uma generosa quantia para o nome da sua amada, com vista ao seu estabelecimento em São Paulo.  Ela ficou encarregada de alugar o espaço e cuidar dos trâmites iniciais para o novo escritório de contabilidade. Sendo brasileira seria muito mais fácil. 

A confiar na sua estrela guia e na sua amada, finalmente o nosso herói, vê a grande cidade aproximar-se, depois de uma enorme extensão de verde e de terra. Parece-lhe ser ele próprio um drone que vai observando de cima os grandes edifícios de S. Paulo, vendo-se cada vez mais perto. Brasil! Finalmente! Tantas vezes sonhara na sua adolescência, fazer um dia essa viagem, mas que voltas dera a vida e como o desviara dos seus sonhos. Idealnéscio chega por fim ao aeroporto onde Esperança o vai esperar para o levar para a fazenda, sua propriedade. 

Tudo estava combinado ao pormenor. No dia seguinte, teriam tempo para ir visitar o lugar que ela arrendara para o escritório de contabilidade. Por ora começariam a conhecer-se ao vivo e "matar saudades". Após recolher a bagagem, o que demoraria o seu tempo, Idealnéscio, pousa a mala sobre um assento e logo que pode, liga o telemóvel tentando estabelecer ligação com a sua amada, mas por mais que tente não consegue completar a ligação. O número está inacessível.

Decide relaxar um pouco. Certamente ela virá a conduzir e não pode atender. Talvez o telemóvel tenha ficado sem bateria. De repente vislumbra ao longe uma figura que lhe parece Esperança. Claro, ela estaria a observá-lo. Talvez fosse uma brincadeira. "De mau gosto aliás", pensa Idealnéscio, fazendo jus ao próprio nome e precipita-se para lá, empurrando a mala, quase tropeçando, vermelho e ofegante, enquanto a senhora que vislumbrara se levanta e segue caminho, deixando perceber aos seus olhos de míope que não tinha nada a ver com a amada. 

Senta-se por fim. Nesse momento, algo como um pressentimento, cruzou a sua mente. Mas não. Não podia ser. Ele conhecia, a sua casa, a fazenda, os cavalos, os seus amigos. Tinha inclusive participado em festas que organizaram virtualmente. Dormiu várias noites com Esperança a seu lado. Virtualmente, sim. Mas ela estava ali. Que disparate, pensou. Como posso estar a pensar uma coisa destas. Aconteceu qualquer coisa. Daqui a pouco vai chegar e explicar-me o que se passou. "Desculpa querida", murmurou.

Voltou a ligar. Uma, duas, dez vezes. O tempo passava e aumentava o seu desespero. Deu consigo a falar alto: "Esperança, onde estás?", mas a esperança estava cada vez mais longe. No auge do pânico decidiu ir ao Banco para onde tinha feito a transferência, informar-se. Ela tinha levantado todo o dinheiro que enviara. No Banco disseram-lhe que seria muito difícil saber o paradeiro da referida senhora, tanto mais que já tinha tido dois ou três endereços diferentes, e ainda que o soubessem não poderiam dar-lhe essa informação, além de que a conta tinha sido cancelada. Só se fosse à policia, mas iria queixar-se de quê? Não era crime nenhum aceitar uma transferência de um amigo.

Idealnéscio descobriu então que tudo na vida tem um propósito. No seu caso, acima de tudo o seu próprio nome. Pensou em suicidar-se, mas a lembrança da filha a abraçá-lo na despedida "volta depressa, sim pai?", afastou a ideia. Depois de beber uma garrafa inteira de whisky e de dormir várias horas num hotel de terceira, decide telefonar à mulher e contar-lhe a história possível. Conta-lhe então que tudo tinha sido um logro, que a tal empresa intermediária que estava a ajudá-lo a estabelecer-se no Brasil, e que o dinheiro transferido, desaparecera, bem como a conta. "Faço-te uma promessa", diz à mulher. "Nunca mais volto a sair de ao pé de ti". 

Ignorante de tudo, a mulher chorosa diz-lhe que regresse "volta, estás perdoado" pensa Idealnéscio com um sorriso canalha, enquanto prescruta o aeroporto pela última vez com esperança de ainda acontecer um milagre. "Para a próxima serei mais cauteloso", e já vai imaginando como fazer da próxima vez. Pode ser até que tudo não passe de um equivoco. Quando chegar ligará o telemóvel. Esperança há de explicar-lhe o que sucedeu e tudo se recomporá. Mas a mente prega-nos partidas e aqui disse-lhe "mais depressa". 

Nunca irá saber como desceu de uma vez dois degraus da escada do avião, caiu desajeitadamente a embrulhar-se na pasta e galgando a escada para o lado exterior bateu fortemente de cabeça.  Quando acordou não sentiu as pernas. Foi assim que a última promessa feita à mulher, se cumpriu.


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