Desafio para conto
Grupo de escrita criativa - Joaquim Semeano
Texto de Virgínia de Sá
Tema:
Telefonista que está a perder a memória
encontra presidente de Junta de Freguesia que tem vício secreto
Sinto que estou a perder o comboio.
Literalmente. Galo as escadas rolantes, de dois em dois degraus. Chego lá acima, sem fôlego, mas ainda a tempo de pressionar o botão que abre a porta. Tenho o coração na garganta. Entro no comboio. As calças de ganga escorregaram um pouco e repito novamente o tique favorito, puxá-las para a cintura. Subo então as escadas, já dentro da carruagem que avalio, onde apenas um passageiro está sentado a meio dela. Aliás, uma passageira. Observo o seu casaco de inverno, azul, que tem reflexos lilases, quando as luzes lhe batem em cima.
Ia mesmo perdendo o comboio. Ultimamente esta expressão tornou-se uma realidade na minha vida. Sou telefonista há trinta anos. Trabalho numa multinacional, uma rent a car. Os algarismos são para mim uma coisa familiar. Quando me pediam para fazer uma ligação para determinado número, há algum tempo atrás nem necessitava escrevê-lo. Bastava ouvi-lo e já estava a digitá-lo na central, e mesmo que fosse utilizá-lo dali a minutos, ficava na cabeça. Claro que à cautela, escrevia-os todos, não fosse baralhar algum, pois já se sabe que o Tico e o Teco têm destas coisas, mas invariavelmente, ao conferir, o número estava lá. Na cabecinha.
Sabia que o número tal era o da casa do Gomes da contabilidade, o número y era o do restaurante onde o Silva ia almoçar com a mulher, e o w era o do motel, onde o Fernandes ía dar uma voltinha com a Lurdes do car control. Quando comecei a trabalhar como telefonista, o sistema da central de telefones era ainda de cavilhas. Mais tarde passou a alavancas, e desde há alguns anos passou a uma central elétrica com dezenas de botões que se iluminam e piscam quando entra uma chamada em linha, e ficam acesas quando a extensão está ocupada.
Não sei o que me aconteceu, mas recentemente tenho alguns momentos em que aquele "bezidróglio" me parece alguma coisa estranha. Há dias dei comigo a olhar para ele durante algum tempo como se fosse um elefante a tocar violino, sem saber o que fazer com o animal em seguida. O pior de tudo é quando julgo ter decorado um número de telefone, e zás! ele desaparece da minha memória como se tivesse voado...
Agora que reparo melhor na mulher do casaco azul, parece-me que a conheço. Mas de onde? Ela vira o rosto para olhar pela janela e reparo que é a Presidente da Junta de Freguesia. Que fará a criatura num comboio quase deserto a esta hora da noite? Toda a gente sabe que pelo menos em Portugal, um presidente de uma Junta de Freguesia importante não anda normalmente de comboio, mesmo que o carro esteja a arranjar na oficina e o mecânico não cumpra a sua palavra: "entrego-lhe amanhã sem falta", como é habitual.
Decido sentar-me dois lugares atrás, mas ao tentar entrar para o assento, faço-o tão desajeitadamente que tropeço na lateral do banco e quase me sento no banco da dita cuja. Ela vira-se e não posso evitar cumprimentá-la uma vez que me conhece.
A primeira coisa que sinto é um hálito forte a álcool. Oh, diabo! Será que a mulher está a passar por algum desgosto de amor, e decidiu meter-se nos copos?
- Boa noite senhora doutora, como está a senhora? Vejo que trabalhou até tarde como eu.
A resposta deixa-me atónita, pois a criatura mente com quantos dentes tem na boca.
- Não sou presidente de coisa nenhuma e não estive a trabalhar.
Quase lhe respondo "vê-se", mas achei que era um pouco demais. Reparo então que tem uma queimadura na mão direita e que sobre o casaco, agora lilás, há uma mancha que só pode ser de sangue.
- Pois, a Junta de Freguesia, fica do outro lado...digo numa voz baixa, certa de que estou a pisar terreno perigoso.
A criatura levanta-se de repente, cambaleia e grita-me quase em cima do nariz:
- Não sou presidente de merda de Junta nenhuma, porra!
- Desculpe minha senhora, devo ter feito confusão. Respondo num sussurro.
Agora é que foi de vez! penso. Como fui confundir o raio da mulher com a Presidente da Junta? Fiquei tão indisposta que não preguei olho toda a noite.
Só no dia seguinte li no jornal em letras capitais "Presidente de Junta é destituída por vicio secreto".
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