Por detrás da janela
Baixa a música! dizia a minha mãe, que ficava sempre incomodada quando eu queria ouvir música. e eu sorria intimamente e pensava que ela queria dizer "baixa o som", mas não dizia nada, porque sabia que iria iniciar uma série de reprovações inúteis. Tinha doze anos, quando o pai partiu.
Os pássaros seriam então a minha companhia musical. Saía para o pequeno quintal de cimento com vinte e cinco metros quadrados, entalado com os seus muros altos, entre os prédios da rua. Alguém tinha aprisionado um pobre melro que lançava o seu canto sobre os muros de cimento. Nas traseiras do meu quintal uma grande árvore conseguia espreitar por sobre a parede do quintal da vizinha Josefina, e oferecia-me uma nesga de verde e o canto de alguns pássaros que ali encontravam o seu oásis, talvez atraídos pelo melro cantor, ou talvez não.
Às vezes ficava só no quartinho pequenino, onde se tinham encafuado os livros do pai, depois da sua partida e da mãe ter vendido a mobília de escritório. Chamávamos-lhe "o quarto pequeno". Já tinha sido o quarto de ninguém e agora era o meu cantinho, "o quarto dos livros dos pai". Aí podia ouvir a "minha" música, na sua rádio. Depois da partida do pai, nunca mais houve prendas. De gira discos, nem falar. Só experimentei, quando alguma amiga emprestava e era por um dia ou dois, daqueles pequeninos, onde só se podiam ouvir discos pequenos e não long plays.
Da janela também se via pouco. Era a confluência de quatro ruas, porque o nosso prédio ficava numa esquina. Na cidade de Lisboa, em bairros que não eram de passagem, durante a semana havia pouco para ver durante o dia, ou durante as horas em que as pessoas estavam a trabalhar. Lembro-me dos pregões, da fava rica de manhã, muito cedo, ainda escuro. Naquele tempo a mulher da fava rica ainda apregoava, "Fava rica! ", mas nunca provei. O pai era muito seletivo com a comida. Feita assim por pessoas, cuja higiene podia não ser respeitada. Tinha receio que fizesse mal à sua menina.
De madrugada, por vezes vinha a carroça dos cães. Assim lhe chamavam, mas era na verdade uma carrinha com grades, como se fosse uma prisão, conforme espreitei uma vez. Ouvia-os a ganir, mas o pai nunca me deixou ver. Lembro-me de ficar angustiada e ainda hoje fico quando penso naqueles latidos agudos de dor e sabia que estavam a apanhar os cães vadios para levar para canil. Ignorava o que lhes faziam. Só soube muito mais tarde, que, se os donos não os fossem buscar em algumas horas seriam todos "abatidos".
Nos ruídos da manhã havia também na época dos figos "Quem quer figos, quem quer almoçar?" e o azeiteiro, que também vendia petróleo para os candeeiros e vinha normalmente ao fim de semana. Naquele tempo, dada a amperagem ser baixa, faltava a luz com alguma frequência e era normal as pessoas terem um candeeiro de petróleo, que podia acender-se até que voltasse. Lembro o pregão: "Pitrolino!". Estaria relacionado com o petróleo? ou era uma palavra inventada pelo pregoeiro?
À noite a D. Ausenda vinha todos os dias trazer o Jornal. "Olhó Diário de Lisboa, o Diário a pular". Era o que eu ouvia de Diário Popular. O meu pai lia o "Diário de Lisboa". A jornaleira tocava a campainha e mal lhe abríamos a porta da escada, já estava a deixar o jornal no tapete. Eu gostaria de lhe fazer alguma pergunta, mas já saía pela porta do prédio fora e só conseguíamos apanhá-la para trocar umas palavras quando vinha receber os jornais no final do mês. Aí podia observar as suas mãos da côr do carvão. E a Dona Antónia, eletricista, que vinha trocar as válvulas da telefonia? Que estranho para a época haver uma mulher eletricista. Se não recordasse os seus nomes pensaria que a memória me traía. Verdade é que essa janela e essa porta se abriam sobre o mundo e lá cresci detrás delas.
Muito boa esta prosa da vivência histórica , bem escrita, suave, gostei de a ler, parabéns, um único reparo, deve sempre dizer : fazer umas perguntas, quando se trata da curiosidade.
ResponderEliminarGrata José Moreno. Neste caso sei de quem é, mas é sempre bom assinar o comentário. Um abraço.
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