sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Do livro "História de Uma Viagem, ou Duas, ou Talvez Não"


Do livro "História de Uma Viagem, ou Duas, ou Talvez Não"


 ... Farpas afiadas. Pelas paredes dentro. Até a luz da sala me parece mortiça. Câmara mortuária. As cinzas da mãe sobre o móvel rústico francês, lá no cimo entre duas estátuas, cabeças do Buda em pedra. Por aqueles dias, trezentos e sessenta e cinco vezes quatro, excluindo o bissexto, me chamaste filha, como nunca o fizeras, até ao dia em que perdida a memória por completo, e dado o conhecimento ancestral, de que são as mães que cuidam dos filhos, me chamaste mãe.

Entre lágrimas e cascas de batatas, cenouras e folhas de alho francês, ouvi-te dizer como num sonho – Estás a fazer sopa mãe? … É tão boa a tua sopa… fazes uma sopa tão boa! – Voltei-me surpreendida. Sentada à mesa, os olhos sem expressão, folheavas uma revista que não sabias ler, com imagens de paisagens que não vias, que eu te colocara nas mãos. E respondi-te, mais uma vez comovida, com aquela dependência mansa, que te tornava tão próxima dos meus gatos e cadela, aliás todos reunidos na cozinha, confiados e serenos, cada um na sua cama, enquanto preparo as refeições. – Sim filha. Estou a fazer uma bela sopinha de nabiças para nós. – Acho que nunca amei tanto a minha mãe, como nesse tempo. E afinal ela, a mim. Outras vezes, nos raros momentos de lucidez, dizia-me – Trabalhas tanto, filha. Devias descansar. Ela, que nunca me chamara filha com aquela ternura...


Virgínia de Sá

2 comentários:

  1. Gosto de te ler. Espero pela saída do livro, que vou adquirir

    ResponderEliminar