Do livro "História de Uma Viagem, ou Duas, ou Talvez Não"
Capítulo XVII
Farpas afiadas, adeus mãe
... Farpas afiadas. Pelas paredes dentro. Até a luz da sala me parece mortiça. Câmara mortuária. As cinzas da mãe sobre o móvel rústico francês, lá no cimo entre duas estátuas, cabeças do Buda em pedra. Por aqueles dias, trezentos e sessenta e cinco vezes quatro, excluindo o bissexto, me chamaste filha, como nunca o fizeras, até ao dia em que perdida a memória por completo, e dado o conhecimento ancestral, de que são as mães que cuidam dos filhos, me chamaste mãe.Entre lágrimas e cascas de batatas, cenouras e folhas de alho francês, ouvi-te dizer como num sonho – Estás a fazer sopa mãe? … É tão boa a tua sopa… fazes uma sopa tão boa! – Voltei-me surpreendida. Sentada à mesa, os olhos sem expressão, folheavas uma revista que não sabias ler, com imagens de paisagens que não vias, que eu te colocara nas mãos. E respondi-te, mais uma vez comovida, com aquela dependência mansa, que te tornava tão próxima dos meus gatos e cadela, aliás todos reunidos na cozinha, confiados e serenos, cada um na sua cama, enquanto preparo as refeições. – Sim filha. Estou a fazer uma bela sopinha de nabiças para nós. – Acho que nunca amei tanto a minha mãe, como nesse tempo. E afinal ela, a mim. Outras vezes, nos raros momentos de lucidez, dizia-me – Trabalhas tanto, filha. Devias descansar. Ela, que nunca me chamara filha com aquela ternura...
Gosto de te ler. Espero pela saída do livro, que vou adquirir
ResponderEliminarObrigada! Quem é que comenta? Quer mesmo ficar anónimo?
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