Desafio para conto
Grupo de escrita criativa - Lara Barradas
Texto de Virgínia de Sá
Tema: Um objeto da casa que se revolta por ser maltratado
Pendurei-o de cabeça para baixo, que é como quem diz de peitilho para baixo, ao sol. Uma gaveta cheia deles, mas eu gosto é daquele. É mais alegre, verde alface. Contém em si o amarelo que traz, tal como o sol, alegria e boa disposição.
O pior é quando, passados três ou quatro dias, começa a dar sinais de uso. Um pingo aqui, outro acolá. Além uma nódoa. Cruzes canhoto. Que raio de culpa terá o tal canhoto, se aqui ninguém escreve com a mão esquerda. Bom, eu até voto à esquerda, mas…
Daqui a pouco venho virá-lo outra vez. Um bocadinho de sol, nunca fez mal a ninguém e lá está. É a alegria que entra novamente na cozinha junto com ele.
Olha, já está seco. Vou já colocá-lo! Quentinho ainda é melhor. Nem é preciso passar a ferro. Isso era dantes.
Quem havia de dizer que me ia começar a arreliar? Quis dar a volta aos atilhos e atá-lo à frente na segunda volta, mas as barrigadas do Natal, com doces e tudo, ainda estão presentes e não consigo senão fazer o laço atrás, depois de lhe dar dois valentes puxões, já aborrecida.
Ouço então uma voz masculina, vinda do lado direito baixo. "Ouve lá, estás a dar puxões a quem?". Volto-me de repente para trás e logo em seguida para a frente, porque não vejo ninguém que possa ter falado. Eu disse ninguém. Não disse nada. Obviamente, porque nada, não fala. "Vê se estás quieta, Já me deste outro puxão". Olho para o sítio de onde vem a voz. Direitinha de dentro do bolso do avental! "Ai mas que coisa", penso. "Agora os aventais falam?", murmuro, colocando a minha cara de parva número dois, e procurando atrás da porta da cozinha e na outra que dá para o corredor, uma explicação viável.
Decido dar dois novos grandes puxões ao avental, desta vez intencionais. "Aiiiiii". Ouço gritar. "Já chega, não? Desta maneira, salto daqui e vais acabar cheia de nódoas, e logo hoje que é salmão e o grelhado espirra para todo lado.
Desta vez dou um salto para trás. Então o raio do avental além de falar, agora grita e ameaça? Decido responder-lhe: "Estás a gritar comigo, ó pedaço de trapo?. Olha que te reformo. Ou então passas para a gaveta dos panos da limpeza que é um gosto!" Inicia-se então um diálogo completamente inusitado. E é assim que acabo por pensar em reformar o meu avental favorito.
Eis senão quando me tocam a campainha. É o pintor para me dizer que acabou de pintar o portão e já se vai embora. Ele sai e chego-me ao portão para o fechar à chave. Infelizmente tropeço em alguma coisa e acabo por encostar-me demasiado. O avental verde alface tem agora riscas bordeaux. "Olha pronto, agora vais mesmo para o lixo". Ouço então uma voz sensual: "Não precisas de um aventalzinho simpático para as tuas pinturas?".
Fiquei a pensar naquilo e acabei por o promover. Passou de avental de cozinheira a avental de pintora. Com tanta conversa, ainda é capaz de me inspirar para novas pinturas.