Contos da Escrita Criativa
Exercícios de imaginação
Carta a uma amiga
Saber-te aí desse lado, pronta a escutar-me é importante para mim.
À distância também é mais fácil.
Depois fiquei apreensiva, porque pensei que estava a preocupar-te com um assunto que não te diz respeito. O nosso karma pessoal basta-nos. Não necessitamos atrair o dos outros. Mas fico grata por poder pôr para fora o que me corrói por dentro.
Claro que tento distrair-me, fazer coisas que me agradem. Inclusive trabalho, e isso dá-me prazer, mas a ferida está lá e acordo de noite com ela cravada no peito. Acho que ele nem percebe, ou finge não perceber. Interrogo-me, se também sou eu que distorço as coisas. No entanto, a situação é real, tal como a descrevi. E quando tudo parece estar a correr bem, apesar das dez horas seguidas no computador sem me dar atenção, lá vem algo mostrar que não estou errada.
Aos poucos foi tomando conta da minha vida, da minha casa, das minhas coisas. Fecha-me a porta do escritório na cara, se estou a brincar com os cães. Manda-me calar porque faço barulho, sopra e diz palavrões, porque ocupo o meu espaço no meu computador frente a ele, porque não tenho outro, o que vou evitando cada vez mais, porque me incomoda que o incomode. É esse o objetivo, ou fá-lo inconscientemente?
Não quer sair dali. Eu não gosto de passear sozinha. Deixei de ir à praia porque ele não gosta de água fria e de esperar para estacionar. Passeios na natureza, acabaram para mim. Com mágoa. Paguei metade do carro e pago o seguro sempre, e a gasolina quase sempre, mas deixei de conduzir e perdi a confiança para pegar no carro sozinha. E os dias passam iguais. A circulação nas minhas pernas piora.
Aqui estou eu prisioneira de mim, na minha própria casa. Escrever é o meu grito de revolta. Porque ele se mostrava às pessoas como o benfeitor que cuida da senhora doente oncológica, e paternalista, tenta protegê-la de tudo, mas não é assim.
Sinto sempre que há uma espada apontada as minhas costas. Só não sei quando vai cortar mais um pedaço de mim. Uma vez foi-se embora durante vinte e um dias em que não soube nada dele, despediu-se de manhã para ir trabalhar com abraços e beijos frente a uma amiga que estava presente. A minha amiga disse-me quando ele saiu que eu "tinha muita sorte" por ter encontrado o Daniel. Aqueci o almoço e pus a mesa para almoçarmos e fiquei vinte e um dias à espera que voltasse e me dissesse o que se passou. Quando voltou eu tinha já uma recaída do linfoma.
Face ao silêncio dele, não sei se estará a preparar outra partida inesperada. Com ele nunca se sabe. Já deixou assim outras pessoas antes e já me culpou por isso.
Às vezes penso em mandá-lo embora, mas não poderia fazer isso. Sinto-me responsável e não quero que ele sofra. Seria incapaz de o pôr na rua sem ter para onde ir e com graves dificuldades de subsistência. Se eu fizesse isso, não ficaria mais feliz. Claro que também gosto dele. As pessoas são compostas de muita coisa. Depois, com a minha idade e os problemas de saúde que já tenho, além de talvez não aguentar uma separação e o inerente, estou muito vulnerável e também necessito dele. É uma companhia, embora não a necessária e como eu gostaria que fosse, mas ajuda.
A vida não é perfeita e tomamos decisões que não são as melhores, mas por vezes as possíveis. Obrigada por me ouvires.