segunda-feira, 19 de dezembro de 2016
A minha avó era uma espécie de National Geographic da Época
segunda-feira, 12 de dezembro de 2016
O meu pai, a televisão e a Lurdes
O meu pai, a televisão e a Lurdes
Sempre recordo o meu pai, como um homem bom. Paciente, calmo e sempre disposto a fazer qualquer coisa pelos outros. Lembro-me também de gente que batia à porta tarde da noite, pedindo ajuda ao pai para as mais variadas coisas, desde fazer um telefonema, a pedidos de emprego. A todos o meu pai, um simples funcionário público do Ministério das Finanças, depois de um acidente na Marinha de Guerra, atendia, e dava entrada em casa, ouvindo com benevolência e na maior parte dos casos, senão em todos e ajudando a encontrar trabalho. Recordo os comentários da minha mãe – mas que mania a tua de meteres toda a gente dentro de casa – e o meu pai carinhosamente, oh mulher, tem paciência, tu não vês que o desgraçado precisa de pão para dar aos filhos? Numa altura em que raros eram os que tinham telefone, nunca aceitou dinheiro de um telefonema.Quando tivemos televisão por volta de 1967 deixava a “mulher-a-dias” nome então dado à empregada doméstica não fixa, vir assistir a nossa casa, à “Noite de Teatro” às 4ªs feiras e às 5ªs feiras à Tourada.
Naquele tempo a televisão que era a preto e branco, tinha apenas um canal, a RTP 1. Muitas vezes as imagens apresentavam-se turvas e “com chuva”. Era o termo que usávamos para designar a pixelização da imagem e mal se conseguia decifrar o que estava a passar no écran. Outras vezes começavam a aparecer riscos horizontais e a imagem subia continuamente impossibilitando a visualização. Tínhamos que sintonizar várias vezes uma pequena antena interior para conseguir ver o programa, o que se tornava frustrante. Presumo que tenha sido esta frustração que tenha levado o meu pai a bater algumas vezes na parte superior da televisão. Ao que parece dava resultado, pois a imagem muitas vezes tornava-se nítida e deixavam de aparecer os tais traços. As “palmadinhas”, passaram a ser recorrentes e até a Lurdes quando as imagens começavam “aos saltos”, repetia: - Oh Sr. Artur, dê-lhe umas palmadinhas!
Como vão longe esses tempos e que grande é a diferença entre as televisões que podem ter hoje 2 cm de espessura e gravar programas para assistir à hora que nos convém, e aquelas televisões com uma enorme caixa traseira que obrigavam a ter um móvel próprio, ou uma mesa só para colocar uma televisão com mais de 40 cm de largura!
terça-feira, 6 de dezembro de 2016
A Apologia da Desgraça
A Apologia da Desgraça
A Apologia da Desgraça
Não sei se acontece convosco, mas desde que este governo está em funções, sinto-me muito mais aliviada.
Continuo sem emprego, a oito anos e dois meses da reforma, doente oncológica, fazendo parte desta peste grisalha, sem subsídios, sem pensão, a contar todos os dias até ao fim do mês e a contar os anos até à reforma, esperando e desejando que não prolonguem a idade da reforma por mais tempo... esperando e desejando que o meu companheiro, com quem vivo há sete anos em união de facto, continue a ter trabalho, a recibos verdes, esperando e desejando que este ano as formações que facilita não parem este verão para podermos continuar a honrar os nossos compromissos, a pagar a prestação da casa, que já paguei umas três vezes ao Banco, a eletricidade, que nunca baixou e antes pelo contrário, apesar de ter substituído todas as lâmpadas por outras mais económicas, a água cujo valor também não baixa, apesar de os banhos serem cada vez mais curtos e a torneira aberta cada vez com menos caudal, o gás que cada vez utilizo menos, com refeições mais rápidas e poupando nos banhos, a ‘internet’ que me obrigam a utilizar para ter acesso ao portal das finanças, da saúde, do Banco e do raio que parta, mas que tendo mesmo assim a mais barata, também pesa no orçamento, a prestação do condomínio que continua em atraso, pois ainda não consegui obter o milagre da multiplicação, o IMI cujas grandes reduções ainda não verifiquei e que me obrigam a pagar, apesar de segundo o Banco a casa ainda não ser minha, mau-grado já a ter pago três vezes ao mesmo, a TSU que o meu companheiro tem que pagar todos os meses que nos meses de verão, para poder continuar a trabalhar, leva-lhe metade do que recebe, etc.
Neste contar dos dias até ao fim do mês e neste contar dos anos até à reforma, vejo passar os meus dias e os meus anos, vejo passar os meus sonhos, vejo passar a que um dia foi a menina do seu pai e torno-me cada vez mais antissocial, deixo de ter gosto em ir ao café, não só porque o dinheiro do café diário soma 18€ ao fim do mês, mas porque às vezes me sinto incomodada pelas senhoras bem vestidas que ficaram com as reformas antecipadas que fazem hoje falta a quem de facto delas necessita e ainda olham de cima para baixo para "a miserável" peste grisalha que não tem meios para frequentar o cabeleireiro todas as semanas e apresentar-se decentemente no café... Culpa minha, que escolhi Oeiras para viver. Devia ter escolhido um bairro pobre e escondido, mas nessa altura em que "vivia acima das minhas capacidades", embora sempre com o valor do meu trabalho, e sem nunca ter pedido nada a ninguém, julguei, na minha ignorância ingenuamente, que o valor que descontava para a Segurança Social ira valer-me um dia e que esse tal organismo faria jus ao nome que tem.
No entanto, há uma coisa que me conforta. Apesar de a minha vida não ter mudado em coisa nenhuma, sinto-me muito mais aliviada. Deixei de ouvir o Sr Passos Coelho e o outro Senhor, o dos submarinos, perdoem-me a falta de memória, mas neste momento não recordo o nome, talvez seja por ter feito quimioterapia durante três anos, ou porque não me apetece citar certas pessoas, mas como ía dizendo, deixei de ouvir o Sr. Passos Coelho, que em tempo também esteve desempregado, mas certamente não tão aflito como eu, e o tal Senhor dos submarinos, que falava em poupar e viver acima das capacidades, protagonizarem a desgraça dia a dia, hora a hora, minuto a minuto. De tão deprimida que estava, arrastando-me durante três anos, a fazer quimioterapia, por vezes esquecendo-me de que pouco ou nada havia no frigorífico, abria a porta do mesmo para cozinhar uma refeição e constatava atónita que estava vazio ou que faltavam ingredientes. Ia então sentar-me em frente ao televisor e dava invariavelmente de caras com os ditos Senhores a falarem em pessoas que viviam acima da média, de apertar o cinto, da União Europeia a quem eu devia não sei quantos milhões, e de austeridade, austeridade, austeridade. Pois meus senhores eu digo PORRA! JÁ BASTA! Espero que os senhores da austeridade nunca mais voltem a sentar-se nas cadeiras do poder, pois para desgraças já bastam as minhas. Haja pelo menos positivismo! Uma sociedade só se muda com atitudes positivas e esperança e a mim, por muito que me rodeiem os austeros, não hão de tirar-me o sorriso do rosto!
quinta-feira, 24 de novembro de 2016
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VIAGEM QUE NÃO SEI ONDE VAI PARAR
A perna vai entrando através da borracha o pé que prende. Ficar invisível tem que se lhe diga. Depois a segunda perna, ainda mais difícil, prende, tropeça, prende, tropeça, cai. Caio para a frente, tenho de me amparar antes que me projete horizontalmente no chão.
Invisível, mas imutável, quero dizer, ainda não consigo viajar sem corpo... Por fim lá consigo enfiar as duas pernas. Agora, sim, é que são elas como enfiar as ancas ainda que estreitas ali naquele tubo? E a barriguinha proeminente depois de duas vezes gerar a cria a primeira vez apenas à distância de três anos do primeiro cio?
Puxo, puxo, suo, sopro, rio-me. Agora sim! Os braços! Sim, os braços. Ainda mais difícil. Quase desloco uma costela num esgar de contorcionista mal preparada. A mão que prende! Choro de raiva ao empurrar o segundo braço. Agora é só encolher tudo. Abdómen comprimido, conseguir enfiar as mamas, que hoje estão maiores que nunca, dentro da borracha azul escura. Uma espécie de Neptuno, sem sexo, sem corpo. Ah... Falta o cabelo. ERRADO. Cabelo é que não falta. Falta enrolá-lo para caber na touca carapuço e agora sim Neptuno, mas sem corpo, sem sexo.
Começo por onde? Desde que sou Neptuno invisível, confundo-me com a bruma (não, não é a de Avallon), digo, quero confundir-me com a bruma para poder encostar-me no teu corpo, sem que o sintas, para que não possas afastar-me. Poder mirar-me nos teus olhos. Vês qualquer coisa à tua frente, mas não podes adivinhar que seja eu. Enxotas-me como a um mosquito, porque és intuitivo e lá, no fundo do mar, sabes que estou ali. Mesmo que o não saibas, pressentes. Estou porque tu queres.
Sabes que me chamaste, quando na primeira vez os teus olhos me fizeram perguntas. Quem és? Quem és?
Tu sabes quem sou. Só tu sabes. Estás nu. Encosto-me por detrás de ti, só para sentir o teu cheiro, a tua pele, ainda que entre a tua e a minha se interponha a pele de Neptuno, meio peixe, meio homem. E é mesmo aí que a sereia torce o rabo e uma espécie de Unicórnio começa a querer fender a pele de Neptuno. Sentes-te incomodado. Sonhas vagamente com uma cena de violação. Mas Neptuno é um rei. Impõe-se pela sua nobreza. Não recorre a truques baixos.
Afasto-me devagar. Agora estou de frente para ti. As tuas pálpebras fremem em REM. Observo os contornos do teu rosto. Não são bonitos, mas são familiares. Conheço-os de cor. Vejo-te os lábios que me apetece beijar com avidez. Ah se tu soubesses a força de Neptuno. Como ele podia subjugar-te apenas pela força do prazer! A sereia volta e sinto os mamilos rijos que quase ferem a pele de Neptuno. Mas o rei volta a dominar o bicho meio peixe, meio mulher. No meio da bruma vejo uma mão erguida, branca e macia.
É a minha mão e acaricio-te o rosto, os lábios, com as pontas dos dedos transformados em pétalas de rosa, faço-te carícias plenas de amor, refreando a paixão. Só quero agora que sejas o meu menino tenrinho que transporto ao colo num doce mergulho. E tu deixas-te guiar. Nos ouvidos um som de búzio, o marulhar das águas, como se estivéssemos outra vez unidos no ventre materno. Vummmmmmmmmm...Vvvvvuuuuuummmm.
Encosto-te a cabeça no meu ventre e tu sonhas que mergulhas. Tens um sorriso de paz estampado no rosto. Apetece-me E SOU contagiada por essa paz. Começo a tornar-me pequenina para caber nos teus braços. Aninho-me neles e agora sinto-me no colo da mãe.
Tudo é fim e princípio... Não sei nem onde começa, nem onde acaba. Mas sei que encontrei o meu lugarzinho onde me sinto em segurança... Que não quero sair dali nem despir o meu fato de Neptuno, para não me afastares.
Tum, tum, tum, tum, ... Oh! É o teu coração. Parece um pássaro que esvoaça. Através das águas profundas o brilho da aurora vem colocar matizes nos meus olhos. Começo a ver o pássaro que bate as asas cada vez mais rápido. Tum, tum, tum, tum, coloco-te sobre o peito os dedos como pétalas.
Sossega. Sossega. Não sabes quem estava comigo na cascata? No dia em que o miúdo viajou dentro do coração? Não sabes? Eras tu!
Texto de Virgínia de Sá escrito em curso de escrita criativa de Paulo Condessa em 2004?
Mulher, capitão, soldado, peão!
Índio, soldado, governanta, capitão.
Amante, feliz, sargento, peão.
No fogão ferve a panela.
Batata, cenoura, nabo, cebola, feijão.… e a chouriça, que bem cheirava!
Já está cozido.
A sopa já se passava.

Agora na tábua corta a hortaliça.
Talvez um dia… príncipes, sultões…
cada vez mais alto, voam dragões.
Na mesa, bem alinhados, como se aprendeu em casa.
Prato! Garfo! Faca!
Direita! Copo! Esquerda! Guardanapo!
A toalha está torta!
Melão! Corta!
Olha o tacho que ferve por fora!
Baixa o lume! Agora!
Abre-se a porta, é ele, que alegria!
Nos olhos um sorriso…
Direita! Copo! Esquerda! Guardanapo!
Desculpa, esqueci-me do pão…
Levanta a mesa, põe roupa a lavar.
Dá banho ao menino. Põe-o a dormir.
Vai lavar a louça. Continua a dança.
Desfaz-se-lhe a trança.
No nascer dos sonhos, não há lugar para o encher da pança.
O homem ressona dentro do sofá.
Vassoura! Lixo! Pá! A máquina ronca. Acabou de lavar.
-Não podes fazer menos barulho? Não pode um homem descansar!
Agora passar a cozinha com esfregona.
Sempre se suja, quando se faz sopa…
Que bom cheiro a alfazema…
Na quinta onde a avó morava, havia alfazema… que bem cheirava…
Se pudesse, voltava lá,
apanhava uns raminhos, fazia uns saquinhos …
Punha na gaveta … e alecrim?
Que bom para fazer chá …
Procura alguém com imaginação para escrever textos diferentes?
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Entre o côncavo e o convexo (resumo de uma sexta à noite)
Bebem-se copos entre cigarros
Esquecem-se lágrimas e desencontros
Dançam os corpos
As frustrações
Os travestis imitam as Divas
Os mal amados disfarçam invídias
Nos karaokes imitam-se vozes
Imitam-se gestos, comem-se nozes.
Almas furadas em buracões
E permeáveis os corações
Ao lado ecoam conversas sem nexo
… entre o côncavo e o convexo …

Príncipes e Sapos
Às vezes a chuva bate forte. Fica a doer no corpo como um laço de corda.
A corda fica bamba. E bamba , a corda bamba e eu balanço nela e cheira-me à canela. Como um doce de arroz onde se prende a trela.
Há sempre uma panela na cozinha, que cozinha
Ao canto da cozinha um sapo que é uma rela. Ferve panela!
Há sempre um príncipe que nunca entrou nela. Ferve sapo, vira príncipe. Arde fogo na panela. Cozinha a rela.
Tira-me a sela! Solta-me a trela! Tira-me a sela!
História de uma Viagem ou duas ou talvez não
- Capítulo I - A Viagem
Aqui vamos nós. Por entre as pessoas que aguardam os passageiros, logo à frente, vejo um homenzinho que gesticula do alto do seu metro e sessenta - Por aqui! - Por aqui! -
- Capítulo II - Esta é a minha família de cabo verde
- Capítulo III - Uma praia surpreendente e um concerto surpresa
Afinal além dos bilhetes pré comprados a 1.500 escudos cabo-verdianos cada bilhete, era necessário reservar mesa, o que já não era possível, pois todas se encontravam reservadas com o respectivo dístico à excepção de uma, sem toalha onde resolvo que nos devíamos sentar sem demora ou restariam as cadeiras do “baile da Paróquia”.
Chegam alguns engenheiros colegas do Criatura, com quem comento a minha indignação, que se apressam a concordar comigo e a dizer que alguém irá pedir contas do sucedido até porque havia alguns jornalistas presentes. Ven do que os colegas concordam comigo, o Criatura vai-me apresentando alguns conhecidos que vão chegando, mapesar de passarem 4 h do início previsto do espectáculo. Não posso deixar de notar o facto de toda a gente o tratar por senhor ou doutor Criatura, à excepção de uma arquitecta nativa trabalhadora do Banco, que o trata familiarmente por tu.
LIVRO actualização do Blogue dia 28/11/2016
Nem tudo são rosas. Tento apagar da minha memória outras memórias menos felizes, mas às vezes uma cortina de tristeza e sofrimento desce sobre o meu rosto e coração.
Quando ele me disse pela primeira vez que lhe tinham oferecido um trabalho em Angola, reagi de imediato fazendo-lhe perceber que não tenho estrutura emocional para relacionamentos à distância. Convenci-me que ele tinha entendido isso e também teria percebido que a nossa relação chegaria ao fim se houvesse um tal afastamento. Parece que no entanto só recusou ir para Angola porque já lá tinha estado e as coisas não correram bem. Um dia sem saber como intui que iam convidá-lo para ir para Cabo Verde. E disse-lho. Não sei porquê mas acho que vão convidar-te para ires trabalhar para Cabo Verde. – Era bom, era! Mas não estou bem a ver.
Percebi que falava a sério e nesse momento também entendi que ia acontecer mesmo e que teria de o deixar partir, significasse isso o que significasse.
Três dias depois telefonou-me de casa para o trabalho. A minha casa segundo ele, a nossa segundo eu. – Não vais acreditar! e eu – Convidaram-te para ires trabalhar para Cabo Verde. – Como é que sabes? – Sei. Um silêncio.
– Não posso recusar. Não estou em condições de recusar. O que achas? – Que queres que te responda? Se não estás em condições de recusar, que queres que te diga? Que posso eu dizer-te que não te tenha já dito? – Tenho que aceitar. Estou desempregado há ano e meio, com um subsídio de desemprego pequeno a acabar.
– Mas tens a tua casa alugada. Podes procurar outra coisa. Não estás assim tão mal. Há coisas mais importantes que o dinheiro. E se de repente um de nós morresse? Se tivesse uma doença incurável? De que serviria o dinheiro? Com a nossa idade não é altura de viver relações à distância. Depois eu nunca me teria envolvido contigo se soubesse que me ias deixar sozinha. Não fiz essa opção de vida. Nunca quis viver sozinha, chegar a casa à noite, encontrá-la às escuras e deitar-me numa cama vazia. Foi essa tua inércia e as horas inúteis que passaste a jogar cartas frente ao computador que nos fizeram chegar a isto. Porque não fizeste nada durante um ano e meio para o evitar? Porquê? Gritei e perguntei até que a garganta me doesse e nada do que disse lhe fez mudar a decisão que já estava tomada.
Partiu em duas semanas deixando-me com a promessa de que em breve viria cá (3 meses) e que eu iria passar com ele um mês de férias inteiro a Cabo Verde.
No dia da partida chorei amargamente nos seus braços. Vi que também estava comovido. – Vai passar num instante verás. São só três meses e estou cá outra vez.
Só três meses. Para ele, só três meses. Para mim noventa noites de solidão, de sensação de abandono. Do meu antigo medo de solidão e rejeição. Noventa noites mal dormidas entrecortadas de soluços, de espaços vazios, de uma cama fria, da ausência de braços que me abraçassem, de conforto, de sexo, de carinho. Noventa noites em que os pássaros gritam nos meus sonhos e os transformam em pesadelos. Noventa noites de gritos mudos, de assombros, do medo de ficar sozinha, de perder o viço e acordar um dia sem sonhos, sem carícias e sem vontades.
Os dias sempre iguais sem incentivo para viver. Sem uma estrada paralela, onde caminhe o outro como um eco de nós, que nos prova que estamos vivos. Que não atravessamos a vida como um sonho. Pois alguém o comprova. Está ali alguém para nos beliscar e dizer que estamos vivos. A vida nunca me fez sentido, sem este eco, sem este espelho, sem este muro, que por vezes tenho que saltar para provar a mim mesma, que consigo ir e vir para e do outro lado. Como se fosse um lado só. Sendo embora dois completamente distintos, na essência, na forma e no objectivo de vida.
Ao fim de cerca de um mês em Cabo Verde, o discurso do Criatura começou a mudar inesperadamente e com isso também percebi que estava com um homenzinho e não com a pessoa especial da minha vida. Sem que eu nada tenha feito para que isso acontecesse, havia frases bruscas, um cortar de discurso inusitado que me deixava perplexa, e perpetuava a minha sensação de abandono e insegurança.
Comecei a andar sobre brasas, literalmente. Começara a fazer caminhadas e práticas meditativas xamânicas que me levavam cada vez mais fundo, dentro de mim, ao fundo de mim e com elas e com esses mergulhos fundo, fundo, vinham ao de cima todas as feridas do passado pedindo para serem curadas.
Desde o pré nascimento fui alvo de rejeição por parte da minha mãe e em criança de certa forma de abandono. Sempre me imputou a culpa de ter nascido, e com essa certeza de não ter sido desejada, a sensação de estar a mais, de não pertencer ali. Nunca me atrevi a abrir uma gaveta na casa de minha mãe. E noto agora que digo a casa de minha mãe até hoje. Nunca a senti como a minha casa.
Fui sempre uma intrusa no meu próprio espaço, no espaço onde nasci. Nem sequer era a casa de meu pai. O meu pai a quem ouvi nos momentos de angústia, quando chorava ao pé de mim e a quem eu consolava, do alto dos meus cinco ou seis anos. Dizia em soluços referindo-se à minha mãe – Quando a conheci trazia umas alpercatas calçadas.
A minha mãe que por vezes desaparecia, sem deixar rasto, não sem antes ter provocado uma violenta discussão à qual presidia com vantagem. O meu pai chorava então amargamente e soltava frases, para mim, à época, sem sentido. – Paizinho, paizinho, não chores, dizia-lhe aflita fazendo-lhe festas no rosto. – Paizinho, dizia tentando desviar-lhe a atenção – o que são alpercatas? - Uma espécie de sapatos de pano, que aquela miserável trazia calçadas, quando a conheci.
A minha mãe que tinha 24 anos a menos que o meu pai, teria mais de 30 pares de sapatos, casacos de peles e estolas e todos os anos vinha durante uns meses uma modista a casa fazer as toilettes. Durante anos abominei tudo o que parecesse com toilettes femininas e vestia-me como um rapaz, mesmo depois de ter casado, durante muito tempo. Só muito mais tarde viria a perceber o que levaria a minha mãe a comportar-se daquela forma.
Um dia o meu pai também partiu.Deixou-me com treze anos entregue à minha sorte e à mãe madrasta, que me rejeitou então mais do que nunca. Dizia – E deixei eu isto vir ao mundo à espera de uma herança. O pai tinha a mania que ela era muito inteligente. Há-de sair daqui uma grande coisa! Outras vezes se eu chegava a casa, normalmente regressada da escola, com ar feliz – De onde é que vens vadia? Vai pôr-te a passar a roupa a ferro minha porca. Estes apupos e piores, foram companheiros da minha adolescência desde a altura em que o meu pai teve uma trombose e deixou esta dimensão.
De repente deixei de ser a menina do meu pai, a filha do senhor Artur, e que era chamada de menina Gininha pelos vizinhos, para passar a ser qualquer coisa.
O não ter sido uma criança desejada, pela minha mãe, fez com que me sentisse sempre uma espécie de intrusa na minha própria casa. Aliás senti sempre que não estava na minha casa, quando estava só com a minha mãe.
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TEXTOS E TEXTOS / POEMAS
A DERROCADA DO DISCURSO INOVADOR
A mulher do discurso pirâmide foi construindo o seu edifício pacientemente desconcentrando os ouvintes, transformando-os em bocejos e suspiros. Alguns de tanto tentar penetrar a força das palavras até adquiriram torcicolos.
Colocou primeiro as mais pesadas, suficientemente impenetráveis e coesas na base. Depois foi construindo metodicamente, umas a agarrar as outras sempre sobrepostas. Suficientemente sólida a parede das palavras, foi construindo mais três, que se amparavam à primeira, sempre com estudada inclinação e peso para que o interior OCO ficasse protegido de intromissões.
Terminava a construção, já os topos mais vulneráveis, por terem sido construídos no final com outro tipo de palavras mais leves e banais, quando da assistência hipnotizada com a força da erudição palavreática alguém teve de dizer alguma coisa para o discurso não parecer tão oco como o interior da pirâmide.
A voz da criatura soou encantadora por cima da assistência, qual flauta de Krishna. A assistência adormecida, sem atentar ao conteúdo, mas seguindo apenas o som. De súbito, alguém deu pelo espírito santo da orelha e ouviu claramente:
- A linguagem poética vai acabar. Agora só podem utilizar-se metáforas eruditas, abstratas e suficientemente dissimuladoras de intenções!
De repente a mulher, com espírito santo de orelha e língua de serpente soltou uma voz meio desconexa:
- Ora, isso não tem nada de inovador. Já se fazia no tempo da outra senhora, utilizarem-se metáforas eruditas, abstratas, e suficientemente dissimuladoras de intenções...
Os olhos da mulher que fazia o discurso faiscaram. As palavras caíram todas.
E toda a pirâmide se desmoronava, perante a assistência pesarosa. Afinal um edifício tão coerente e sólido...
No centro da pirâmide estava um homem. Enrolado sobre si mesmo na posição fetal os pés a as mãos juntos acorrentados com uma grilheta de palavras. Os olhos perdidos sem LUZ, refletiam o cérebro dissolvido pelos esforços exercidos a desmontar as palavras radioativas.
Em torno de si revolteavam borboletas de cores, azul metálico, verde alface, amarelo jasmim e rosa fúcsia.
Eram os sentimentos que na ânsia de beber as palavras enganosas radioativas, o homem sacudira violentamente.
Na sua pequenez, tornava-se enorme pela força das palavras. Semicerrando os olhos ver-se-ia uma crista reptilária que lhe subia ao topo da cabeça, e ainda as palavras verdes radioativas lhe prendiam os pulsos e os tornozelos - estão verdes não presta - mas eu não sou raposa - já as borboletas tinham descoberto um escorrega de LUZ e entravam pela boca, pelo esófago envoltas numa luz matutina ainda húmida e dando volta em bailado sincronizado qual clave de sol iam rodopiando à volta do coração preenchendo-se de uma luz branca e dourada que se distendia a todo o corpo.
Por fim o corpo do homem era luz. Passou de opaco a transparente, deixando ver todos os órgãos que pulsavam regulares, após o que se transformou numa massa incandescente.
As radioativas soltaram-se guinchando e fugiram a sete pés (cem) parecendo centopeias.
Atarantada (atarantulada) a insignificante mulher com língua de serpente inclinava o pescoço para um só lado, incapaz de dizer sim ou não e balbuciava palavras incoerentes sem perceber todo o processo, nem qual seria a sua missão ali...