segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

A minha avó era uma espécie de National Geographic da Época

A minha avó materna, que vivia numa quinta perto de Lisboa, onde eu passava raramente algum fim de semana, ou que por vezes ficava uns dias na nossa casa, era uma espécie de National Geographic da época. Contava estórias de quando esteve em África.

Lembrava-se que os pais ainda tinham tido escravos, (numa época em que já não seria normal tê-los). Apesar de a escravatura ter sido abolida em todo o Império Português, em 1869, a minha avó referia-se a criados que teriam tido como escravos. Por estranhar hoje, que tal fosse possível, fui investigar e encontrei o seguinte: “Após a abolição, o Império Português primeiramente estabeleceu um sistema jurídico da escravatura em todas as suas colónias em 1899, mas o Governo Português não implementou o sistema em Angola até 1911, o governo aboliu escravatura em 1913”. Está, portanto, explicado.
Das estórias da minha avó, recordo uma que me marcou substancialmente, e que hoje depreendo pelo que me lembro das mulheres da minha família, que me tenha sido contada como sinónimo de obediência. Contava então a avó que punham um menino negro de 8 anos a lavar os degraus da casa onde viviam e que se não ficassem bem lavados o garoto levava com o pano sujo na cara até a criada governanta se cansar e depois tinha que repetir todo o trabalho até ficar impecável, sob pena de se repetir o “ensinamento”.

Contudo, havia outras estórias muito interessantes. Por exemplo, a das hienas que por vezes se reuniam à volta da casa noite dentro a “chorar”. A avó dizia que era para enganarem os humanos, que acabavam por ter pena e abriam as portas para alimentarem os bichos. Parece que no início da ocupação pelos colonizadores, casos houve em que isso aconteceu. A avó acreditava ser este “choro” uma estratégia dos animais para apanharem os incautos e não a linguagem natural das hienas, que eventualmente se aproximariam das casas com fome.

Também havia estórias de cobras que entravam nas casas e quando as mães adormeciam a amamentar os seus bebés, colocavam a cauda na boca do bebé e sugavam o leite das mães. Desde cobras gigantescas que engoliam cabras e ovelhas inteiras a macacos que faziam tropelias para enganarem os donos, a minha infância foi povoada por contos e lendas que estimularam a minha imaginação.


4 comentários:

  1. Cuanta sabiduría y tesoros ocultos en la memoria tienen las personas mayores. cuentos y leyendas! Cosas de la vida del ayer y del ahora! El libro que escribes es tan interesante y repleto de curiosidades que quien lo lee se queda con sabor a poco y desespera con la espera del siguiente capitulo

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  2. E estas são as estórias que conheço das minhas raízes. Sou a 2º geração e meia em Moçambique. Essa, "e meia" porque meus avós maternos foram para Moçambique muito jovens. Meu avô com 13 anos e minha avó com 21. Com eles a "escravatura" ainda era presente. Com eles a troca de cabeças de gado por sacos de farinha eram "normais"...
    E eu cresci naquela terra.... na minha terra. Com 19 anos retornei às origens dos meus avós. Sinto-me de cá? Não! Sinto-me de lá...
    Isa Botelho

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  3. Olá Isa. Por três vezes tentei responder-te a este comentário, mas esqueci-me de fazer o que aconselho a quem comenta o que escrevo. Ou seja, copiar o texto antes de o enviar. Como este Blogue não funciona de uma forma linear há que tomar precauções antes de que o texto que escrevemos se perca. Então aí vai o comentário (espero :-) )... Não conheço Moçambique. Apenas a Ilha de Santiago em Cabo Verde. Sinto no entanto desde sempre uma nostalgia com saudade desta África como se lá tivesse vivido desde sempre... Não sei se pelos contos da minha avó, ou se por algum motivo mais profundo. Sobre a escravatura muito haveria que dizer... Não somos nós ainda e todos os dias escravos? Escravos do tempo, do trabalho, do consumismo e novamente dos mesmos por ordem inversa? Isto sem desvalorizar o que foi a mais vil exploração do Homem pelo Homem, mas sem também esquecer que esta continua mascarada por formas diferentes. Sentes-te de lá. Eu também! Também me sinto ligada mais à natureza, às coisas belas e simples e gostaria de aí voltar um dia. Voltar para lá, pois à medida que envelheço (cresço), também me sinto menos de cá e mais de lá ... Abraço Isa, irmã do coração.

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