segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

O meu pai, a televisão e a Lurdes


O meu pai, a televisão e a Lurdes

Sempre recordo o meu pai, como um homem bom. Paciente, calmo e sempre disposto a fazer qualquer coisa pelos outros. Lembro-me também de gente que batia à porta tarde da noite, pedindo ajuda ao pai para as mais variadas coisas, desde fazer um telefonema, a pedidos de emprego. A todos o meu pai, um simples funcionário público do Ministério das Finanças, depois de um acidente na Marinha de Guerra, atendia, e dava entrada em casa, ouvindo com benevolência e na maior parte dos casos, senão em todos e ajudando a encontrar trabalho. Recordo os comentários da minha mãe – mas que mania a tua de meteres toda a gente dentro de casa – e o meu pai carinhosamente, oh mulher, tem paciência, tu não vês que o desgraçado precisa de pão para dar aos filhos? Numa altura em que raros eram os que tinham telefone, nunca aceitou dinheiro de um telefonema. 

– Ora essa, não tem que pagar nada! O telefone é um direito público! Dizia.

Quando tivemos televisão por volta de 1967 deixava a “mulher-a-dias” nome então dado à empregada doméstica não fixa, vir assistir a nossa casa, à “Noite de Teatro” às 4ªs feiras e às 5ªs feiras à Tourada. 

Eram sempre noites de gargalhada, as da visita da Lurdes (a mulher a dias). Agarrem o homem! Agarrem o homem! Dizia a Lurdes em pânico e punha-se de pé aos gritos se acaso na pega de caras o forcado não era logo acudido. Quando por fim apaziguada pela ajuda prestada ao forcado a Lurdes em suores, dizia: - Ai senhor Artur desculpe mas isto faz nervos, caramba! … Todos riamos à gargalhada e o meu pai divertia-se a valer e inclusive a minha mãe e todos, com aquela Lurdes genuína, que foi uma importante figura da minha infância.

Naquele tempo a televisão que era a preto e branco, tinha apenas um canal, a RTP 1. Muitas vezes as imagens apresentavam-se turvas e “com chuva”. Era o termo que usávamos para designar a pixelização da imagem e mal se conseguia decifrar o que estava a passar no écran. Outras vezes começavam a aparecer riscos horizontais e a imagem subia continuamente impossibilitando a visualização. Tínhamos que sintonizar várias vezes uma pequena antena interior para conseguir ver o programa, o que se tornava frustrante. Presumo que tenha sido esta frustração que tenha levado o meu pai a bater algumas vezes na parte superior da televisão. Ao que parece dava resultado, pois a imagem muitas vezes tornava-se nítida e deixavam de aparecer os tais traços. As “palmadinhas”, passaram a ser recorrentes e até a Lurdes quando as imagens começavam “aos saltos”, repetia: - Oh Sr. Artur, dê-lhe umas palmadinhas! 

Como vão longe esses tempos e que grande é a diferença entre as televisões que podem ter hoje 2 cm de espessura e gravar programas para assistir à hora que nos convém, e aquelas televisões com uma enorme caixa traseira que obrigavam a ter um móvel próprio, ou uma mesa só para colocar uma televisão com mais de 40 cm de largura!



1 comentário:

  1. Tens textos fascinantes. Quem os lê vai perceber à sua maneira. Vai levar-nos a onde queremos na interpretação. Ambiguidade? Talvez! Vivências tuas... ou de TODOS nós 😊. Gostei da empregada que ia ver a TV... eu também tinha "criados" que comiam comigo a mesa. Em África era um escândalo. Como me diziam, era dar confiança a mais. Mas eu sempre fui assim... PELA IGUALDADE sem demagogia.

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