segunda-feira, 30 de dezembro de 2024





Por detrás da janela

Baixa a música! dizia a minha mãe, que ficava sempre incomodada quando eu queria ouvir música. e eu sorria intimamente e pensava que ela queria dizer "baixa o som", mas não dizia nada, porque sabia que iria iniciar uma série de reprovações inúteis. Tinha doze anos, quando o pai partiu.

Os pássaros seriam então a minha companhia musical. Saía para o pequeno quintal de cimento com vinte e cinco metros quadrados, entalado com os seus muros altos, entre os prédios da rua. Alguém tinha aprisionado um pobre melro que lançava o seu  canto sobre os muros de cimento. Nas traseiras do meu quintal uma grande árvore conseguia espreitar por sobre a parede do quintal da vizinha Josefina, e oferecia-me uma nesga de verde e o canto de alguns pássaros que ali encontravam o seu oásis, talvez atraídos pelo melro cantor, ou talvez não. 

Às vezes ficava só no quartinho pequenino, onde se tinham encafuado os livros do pai, depois da sua partida e da mãe ter vendido a mobília de escritório. Chamávamos-lhe "o quarto pequeno". Já tinha sido o quarto de ninguém e agora era o meu cantinho, "o quarto dos livros dos pai". Aí podia ouvir a "minha" música, na sua rádio.  Depois da partida do pai, nunca mais houve prendas. De gira discos, nem falar. Só experimentei, quando alguma amiga emprestava e era por um dia ou dois, daqueles pequeninos, onde só se podiam ouvir discos pequenos e não long plays

Da janela também se via pouco. Era a confluência de quatro ruas, porque o nosso prédio ficava numa esquina. Na cidade de Lisboa, em bairros que não eram de passagem, durante a semana havia pouco para ver durante o dia, ou durante as horas em que as pessoas estavam a trabalhar. Lembro-me dos pregões, da fava rica de manhã, muito cedo, ainda escuro. Naquele tempo a mulher da fava rica ainda apregoava, "Fava rica! ", mas nunca provei. O pai era muito seletivo com a comida. Feita assim por pessoas, cuja higiene podia não ser respeitada. Tinha receio que fizesse mal à sua menina. 

De madrugada, por vezes vinha a carroça dos cães. Assim lhe chamavam, mas era na verdade uma carrinha com grades, como se fosse uma prisão, conforme espreitei uma vez. Ouvia-os a ganir, mas o pai nunca me deixou ver. Lembro-me de ficar angustiada e ainda hoje fico quando penso naqueles latidos agudos de dor e sabia que estavam a apanhar os cães vadios para levar para  canil. Ignorava o que lhes faziam. Só soube muito mais tarde, que, se os donos não os fossem buscar em algumas horas seriam todos "abatidos".

Nos ruídos da manhã havia também na época dos figos "Quem quer figos, quem quer almoçar?"  e o azeiteiro, que também vendia petróleo para os candeeiros e vinha normalmente ao fim de semana. Naquele tempo, dada a amperagem ser baixa, faltava a luz com alguma frequência e era normal as pessoas terem um candeeiro de petróleo, que podia acender-se até que voltasse. Lembro o pregão: "Pitrolino!". Estaria relacionado com o petróleo? ou era uma palavra inventada pelo pregoeiro?  

À noite a D. Ausenda vinha todos os dias trazer o Jornal. "Olhó Diário de Lisboa, o Diário a pular". Era o que eu ouvia de Diário Popular. O meu pai lia o "Diário de Lisboa". A jornaleira tocava a campainha e mal lhe abríamos a porta da escada, já estava a deixar o jornal no tapete. Eu gostaria de lhe fazer alguma pergunta, mas já saía pela porta do prédio fora e só conseguíamos apanhá-la para trocar umas palavras quando vinha receber os jornais no final do mês. Aí podia observar as suas mãos da côr do carvão. E a Dona Antónia, eletricista, que vinha trocar as válvulas da telefonia? Que estranho para a época haver uma mulher eletricista. Se não recordasse os seus nomes pensaria que a memória me traía. Verdade é que essa janela e essa porta se abriam sobre o mundo e lá cresci detrás delas. 


 POSTAL 1900 - Virgínia de Sá

Divagação sobre um postal de 1900


Ai que louca estou, junto ao meu vasinho. Leve, fresca e nua, como um passarinho.

Em penas deitada, como se repousando, empresto o meu corpo, aos que vão passando.

Banhos e lavagens e coisas que tais, sou asseadinha, que é que querem mais?



Ao domingo, vejo-as passar de chapéu, as saias tapando os tornozelos, de braço dado pela Avenida, e eles ao lado, na sua importância masculina, cabeça levantada, apenas tocando o chapéu ao de leve quando cumprimentam, olhos em alvo, e eu ali, a reconhecer alguns, os carrinhos dos bebés à frente, os petizes a empurrar o arco e as meninas de canudos e laços de cetim.

Bem tento fazer-lhes, por vezes, sinais com o olhar e trejeitos com a boquinha, por tantos beijada e comentada, mas nenhum me vê. Hoje é o dia da família e da missa. Sagrado dia em que se vai à igreja e nunca olhando para a mulher do próximo. Muito menos para a mulher de tantos.

Não me importo. Serão elas mais felizes com os sorrisos trancados nas suas casinhas burguesas com a criadita enfezada, ou serei eu que ouço as confidências dos seus maridos, e me rio e divirto com eles na minha mansarda?

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Tempestade

 








Desafio para conto

Grupo de escrita criativa - Joaquim Semeano

Texto de Virgínia de Sá


Tema:  uma foto de um barco de pesca num mar revolto


Tempestade


De repente à nossa frente, levantou-se uma onda de mais de dois metros de altura. De todas as vezes que tínhamos ido à pesca, nunca assisti a uma coisa como esta. Segurei-me ao mastro com tanta força, que os dedos das mãos começaram a doer-me. 

Além da força que fazia, certo de que iria borda fora se me soltasse, havia o frio. Um ar gélido, tomava conta da proa. Depois o barco subiu na crista da onda, e vi cavar-se à minha frente uma enorme caverna que era o mar dentro do côncavo da onda seguinte, que abria uma garganta pronta a engolir-me. E logo em seguida o som do barco em queda livre, a cair em seco no vácuo que se abria sob a crista da onda. 

Vi os meus dias a terminarem ali. Quando quis soltar o mastro para ir verificar se o meu companheiro conseguia timonar o barco sozinho, percebi que me encontrava literalmente petrificado pelo medo. Os dedos gélidos, não conseguiam separar-se do cilindro de madeira do mastro à minha frente. E novamente a caverna escura abria uma bocarra imensa, ornada de espuma, e o barulho de queda em seco com toda a madeira do barco a estalar como se partisse, me levava a gritar:

- Valha-me S. Miguel!

Carta a uma amiga




Contos da Escrita Criativa

Exercícios de imaginação

Carta a uma amiga


Saber-te aí desse lado, pronta a escutar-me é importante para mim. 

À distância também é mais fácil. 

Depois fiquei apreensiva, porque pensei que estava a preocupar-te com um assunto que não te diz respeito. O nosso karma pessoal basta-nos. Não necessitamos atrair o dos outros. Mas fico grata por poder pôr para fora o que me corrói por dentro.

Claro que tento distrair-me, fazer coisas que me agradem. Inclusive trabalho, e isso dá-me prazer, mas a ferida está lá e acordo de noite com ela cravada no peito. Acho que ele nem percebe, ou finge não perceber. Interrogo-me, se também sou eu que distorço as coisas. No entanto, a situação é real, tal como a descrevi. E quando tudo parece estar a correr bem, apesar das dez horas seguidas no computador sem me dar atenção, lá vem algo mostrar que não estou errada. 

Aos poucos foi tomando conta da minha vida, da minha casa, das minhas coisas. Fecha-me a porta do escritório na cara, se estou a brincar com os cães. Manda-me calar porque faço barulho, sopra e diz palavrões, porque ocupo o meu espaço no meu computador frente a ele, porque não tenho outro, o que vou evitando cada vez mais, porque me incomoda que o incomode. É esse o objetivo, ou fá-lo inconscientemente? 

Não quer sair dali. Eu não gosto de passear sozinha. Deixei de ir à praia porque ele não gosta de água fria e de esperar para estacionar. Passeios na natureza, acabaram para mim. Com mágoa. Paguei metade do carro e pago o seguro sempre, e a gasolina quase sempre, mas deixei de conduzir e perdi a confiança para pegar no carro sozinha. E os dias passam iguais. A circulação nas minhas pernas piora.

Aqui estou eu prisioneira de mim, na minha própria casa. Escrever é o meu grito de revolta. Porque ele se mostrava às pessoas como o benfeitor que cuida da senhora doente oncológica, e paternalista, tenta protegê-la de tudo, mas não é assim. 

Sinto sempre que há uma espada apontada as minhas costas. Só não sei quando vai cortar mais um pedaço de mim. Uma vez foi-se embora durante vinte e um dias em que não soube nada dele, despediu-se de manhã para ir trabalhar com abraços e beijos frente a uma amiga que estava presente. A minha amiga disse-me quando ele saiu que eu "tinha muita sorte" por ter encontrado o Daniel. Aqueci o almoço e pus a mesa para almoçarmos e fiquei vinte e um dias à espera que voltasse e me dissesse o que se passou. Quando voltou eu tinha já uma recaída do linfoma. 

Face ao silêncio dele, não sei se estará a preparar outra partida inesperada. Com ele nunca se sabe. Já deixou assim outras pessoas antes e já me culpou por isso. 

Às vezes penso em mandá-lo embora, mas não poderia fazer isso. Sinto-me responsável e não quero que ele sofra. Seria incapaz de o pôr na rua sem ter para onde ir e com graves dificuldades de subsistência. Se eu fizesse isso, não ficaria mais feliz. Claro que também gosto dele. As pessoas são compostas de muita coisa. Depois, com a minha idade e os problemas de saúde que já tenho, além de talvez não aguentar uma separação e o inerente, estou muito vulnerável e também necessito dele. É uma companhia, embora não a necessária e como eu gostaria que fosse, mas ajuda. 

A vida não é perfeita e tomamos decisões que não são as melhores, mas por vezes as possíveis. Obrigada por me ouvires.

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

O Cachimbo

 





O cachimbo


Flores. 

O cheiro de flores antecedia a chegada dele.

O cheiro e a gargalhada.


Depois as pantufas. O velho sentado no sofá. 

Os olhos perdidos no vazio da parede.

A máquina fotográfica com que captou aquela realidade infeliz.

Um velho. 

Com o seu cachimbo apagado, sem já ter consciência de porque não o acendia.

Estilhaços

 





Escrita criativa

Exercícios de imaginação

Estilhaços


Ela trazia o café numa bandeja redonda e brilhante, com passos leves de amansar as iras e os sonhos. Porque também é preciso amansar os sonhos. Não voem eles demasiado alto e saltem pela janela dos olhos. Foi então que uma bola saltou lá em baixo, no pátio, e fez plom, plom, plom. A velha deixou cair a bandeja, da qual caiu a chávena que se desfez em pedaços. Às vezes as velhas estão trémulas. Não se sabe porquê, mas foi então que tudo parou. O casamento desfez-se em estilhaços cintilantes.

 






Escrita criativa

Exercícios de imaginação

Azul


Entre as agruras da vida, havia o azul dos teus olhos. 

Os teus olhos claros e límpidos de menino a refletir a luz.

Pareciam querer sempre dizer-me alguma coisa. 

E por vezes lá de dentro, espreitava uma maldadezinha, 

que não passava de alguma traquinice, algo matreiro... Sei lá. 

E eu pensava, o menino anjo desceu à terra para estar comigo,

mas tem lá dentro um diabito.


segunda-feira, 8 de abril de 2024

A água

 



A água


 A água veio em avalanche como se fosse uma catarata. 

Quando a água flui assim é como se fosse música. 

Corre água sobre as ideias sem deixar que se percam num sumidouro. 

À minha volta as palavras são açúcar. 

Açúcar é também o que me dizes. 

Vejo as notas em cores. 

Sou invadida por elas e por números. 

Tudo é criação e tudo é real neste universo matemático 

que também é crístico.


sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

 



CAIU UMA FOLHA E BUMM


É preciso ter sentido de amor...

e então

Foi no tempo em que a folha caía

A sopa estava ao lume´

E a alma já não doía

Caiu uma folha e bumm

   como se a alma caísse 

tudo ruiu

e o raio que o partisse

nada disse... e partiu


O meu limão

 




O meu limão


Sentado no teu trono, e ocupado

Trono que era meu e te ofereci

Vives a tua vida embevecido

Vida que não conheço, ou conheci

Contas estórias não vividas
Para lá da imaginação
Enquanto eu só, entristecida
Espremo na cozinha o meu limão

Que torna mais azeda a minha vida
E sulca a minha terra adormecida
Mas sei de ti
Pela computação