terça-feira, 21 de janeiro de 2025

 





Desafio para conto

Grupo de escrita criativa - Lara Barradas

Texto de Virgínia de Sá


Tema: Um idoso que deixou memória



Tenho quase um século de existência


É tarde! É tarde! É tarde! Dizia-me ele, sempre apressado, lembrando o coelho da Alice da outra história. Não havia um dia que não passasse por lá, deixasse uma mensagem, pedisse um conselho, ou trouxesse uma novidade. Aquela expressão à chegada, quase sempre me fazia pensar que de facto o tempo estava a passar com muita rapidez, pelo menos para ele. 

Às vezes dizia-me: Tenho quase um século de existência. Eu ouvia aquilo com os meus trinta anos e ria. Pensava que ele dizia aquilo com graça, mas era a constatação da sua realidade. Foi preciso viver outro tanto, para perceber como aquela frase fazia sentido. Perceber o quanto eu era egoísta, na minha juventude e como não entendia aquele, que talvez fosse um grito de pré despedida.

Uma vez esteve dois dias sem aparecer. Quando já me preparava para lhe ligar, preocupada com o que pudesse ter acontecido, chegou.  Nesse dia não vinha como o coelho da história. Chegou vagarosamente. Como sempre de camisa lavada, e a cheirar a água de colónia, mas entrou devagar, e logo que o vi, pareceu-me diferente. Um pouco mais pálido do que o habitual.

- Então, esteve desaparecido? - perguntei-lhe.

- Apagou-se a luz, disse-me com o seu ar, entre o sério e o jocoso. 

- Ficou sem luz? 

- Exato! Assim se pode dizer. Estava no Banco, junto à caixa, senti uma tontura e zás. De repente apagou-se a luz. Parece que caí. Só acordei na maca da ambulância. Olhe, fiquei a saber que morrer não custa nada. É só apagar a luz. 

domingo, 19 de janeiro de 2025




Desafio para conto

Grupo de escrita criativa - Joaquim Semeano

Texto de Virgínia de Sá


Tema:

Telefonista que está a perder a memória

encontra presidente de Junta de Freguesia que tem vício secreto


Sinto que estou a perder o comboio.

Literalmente. Galo as escadas rolantes, de dois em dois degraus. Chego lá acima, sem fôlego, mas ainda a tempo de pressionar o botão que abre a porta. Tenho o coração na garganta. Entro no comboio. As calças de ganga escorregaram um pouco e repito novamente o tique favorito, puxá-las para a cintura. Subo então as escadas, já dentro da carruagem que avalio, onde apenas um passageiro está sentado a meio dela. Aliás, uma passageira. Observo o seu casaco de inverno, azul, que tem reflexos lilases, quando as luzes lhe batem em cima.

Ia mesmo perdendo o comboio. Ultimamente esta expressão tornou-se uma realidade na minha vida. Sou telefonista há trinta anos. Trabalho numa multinacional, uma rent a car. Os algarismos são para mim uma coisa familiar. Quando me pediam para fazer uma ligação para determinado número, há algum tempo atrás nem necessitava escrevê-lo. Bastava ouvi-lo e já estava a digitá-lo na central, e mesmo que fosse utilizá-lo dali a minutos, ficava na cabeça. Claro que à cautela, escrevia-os todos, não fosse baralhar algum, pois já se sabe que o Tico e o Teco têm destas coisas, mas invariavelmente, ao conferir, o número estava lá. Na cabecinha.

Sabia que o número tal era o da casa do Gomes da contabilidade, o número y era o do restaurante onde o Silva ia almoçar com a mulher, e o w era o do motel, onde o Fernandes ía dar uma voltinha com a Lurdes do car control. Quando comecei a trabalhar como telefonista, o sistema da central de telefones era ainda de cavilhas. Mais tarde passou a alavancas, e desde há alguns anos passou a uma central elétrica com dezenas de botões que se iluminam e piscam quando entra uma chamada em linha, e ficam acesas quando a extensão está ocupada. 

Não sei o que me aconteceu, mas recentemente  tenho alguns momentos em que aquele "bezidróglio" me parece alguma coisa estranha. Há dias dei comigo a olhar para ele durante algum tempo como se fosse um elefante a tocar violino, sem saber o que fazer com o animal em seguida. O pior de tudo é quando julgo ter decorado um número de telefone, e zás! ele desaparece da minha memória como se tivesse voado...

Agora que reparo melhor na mulher do casaco azul, parece-me que a conheço. Mas de onde? Ela vira o rosto para olhar pela janela e reparo que é a Presidente da Junta de Freguesia. Que fará a criatura num comboio quase deserto a esta hora da noite? Toda a gente sabe que pelo menos em Portugal, um presidente de uma Junta de Freguesia importante não anda normalmente de comboio, mesmo que o carro esteja a arranjar na oficina e o mecânico não cumpra a sua palavra: "entrego-lhe amanhã sem falta", como é habitual. 

Decido sentar-me dois lugares atrás, mas ao tentar entrar para o assento, faço-o tão desajeitadamente que tropeço na lateral do banco e quase me sento no banco da dita cuja. Ela vira-se e não posso evitar cumprimentá-la uma vez que me conhece. 

A primeira coisa que sinto é um hálito forte a álcool. Oh, diabo! Será que a mulher está a passar por algum desgosto de amor, e decidiu meter-se nos copos? 

- Boa noite senhora doutora, como está a senhora? Vejo que trabalhou até tarde como eu.

A resposta deixa-me atónita, pois a criatura mente com quantos dentes tem na boca.

- Não sou presidente de coisa nenhuma e não estive a trabalhar.

Quase lhe respondo "vê-se", mas achei que era um pouco demais. Reparo então que tem uma queimadura na mão direita e que sobre o casaco, agora lilás, há uma mancha que só pode ser de sangue.

- Pois, a Junta de Freguesia, fica do outro lado...digo numa voz baixa, certa de que estou a pisar terreno perigoso. 

A criatura levanta-se de repente, cambaleia e grita-me quase em cima do nariz:

- Não sou presidente de merda de Junta nenhuma, porra!

- Desculpe minha senhora, devo ter feito confusão. Respondo num sussurro.  

Agora é que foi de vez! penso. Como fui confundir o raio da mulher com a Presidente da Junta? Fiquei tão indisposta que não preguei olho toda a noite.

Só no dia seguinte li no jornal em letras capitais "Presidente de Junta é destituída por vicio secreto".